Um Príncipe no Fado

Por vezes na sombra, o génio musical de Joel Pina iluminou as grandes vozes do Fado dos séculos XX-XXI.

Nas horas tristes, razão e emoção não se entendem. E nem o conhecimento da lei da vida parece suavizar a dor da despedida de um amigo. Joel Pina teve uma vida rica. Uma vida plena de muitas outras vidas. Faria 101 anos na próxima semana. Ao longo de cerca de 80 anos de actividade artística, desenhou um caminho feito de entrega à arte que abraçou. Por vezes na sombra, o génio musical de Joel Pina iluminou as grandes vozes do Fado dos séculos XX-XXI.  Até há bem pouco tempo, podíamos ouvi-lo na Mesa de Frades, acompanhado por alguns dos seus amigos de sempre. Penso nestes momentos e lembro-me do João Braga e do Pedro de Castro e da (minha) dificuldade em encontrar palavras que possam apaziguar-lhes a tristeza.

Para todos nós que com ele conviveram, Joel Pina foi um exemplo e uma inspiração. O talento e a generosidade do Mestre contagiaram o coração de todos os artistas, de diferentes gerações, que com ele trabalharam. Tinha o sorriso doce e sereno daqueles que sabem ser inteiros em todas as pessoas que são. E Joel Pina foi um grande Músico, um grande Mestre, um Professor, um Amigo. No coração, trazia a grandeza e a integridade de um príncipe. O rosto iluminava-se-lhe quando se lembrava de Amália e dos tempos em que a acompanhou, pelos grandes palcos do mundo, ao longo de três décadas. Mas Joel não foi só o músico que acompanhou Amália Rodrigues durante mais tempo e não foi só um grande músico de Fado: foi o introdutor da viola-baixo na história do Fado e foi também o criador de uma linguagem musical e de uma sonoridade onde hoje todos podemos reconhecer-nos. Desde o Quarteto de Guitarras de Martinho d’Assunção (que integrou, em 1949, com Francisco Carvalhinho e António Couto) ao emblemático Conjunto de Guitarras de Raul Nery (com José Fontes Rocha e Júlio Gomes), passando pelos mais de trezentos discos gravados, a marca pioneira de Joel Pina é, ainda hoje, exemplo e inspiração para diferentes gerações de artistas. Ao longo de décadas sucessivas, Joel Pina imortalizou inúmeros temas que haveriam de fixar-se no nosso imaginário colectivo.

Com o Museu do Fado colaborou assiduamente. Teve, entre outros, um contributo determinante para a consagração do Fado como Património Cultural Imaterial da Humanidade, pela UNESCO. De uma simplicidade e modéstia desconcertantes, Joel Pina tinha a humildade dos grandes. Quando em 2014 co-produzimos o documentário Joel Pina, O Professor (coprodução EGEAC-Museu do Fado, Duvídeo e RTP, com realização de Ivan Dias) habituámo-nos a ouvi-lo dizer, vezes sem conta, que pouco tinha a contar sobre o seu percurso pessoal. Um percurso que testemunhou, contribuiu e protagonizou alguns episódios do maior significado para a história do Fado. E se da altivez do seu legado poderia vangloriar-se, Joel Pina preferiu sempre dar o palco aos artistas que mais admirava. Como em tempos escreveu Tolentino de Mendonça “acompanhar os outros na sua alegria não é tarefa de menor préstimo.” Também aqui o príncipe Joel permanece um exemplo: alegrava-o, pura e simplesmente, a alegria dos outros.

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Joel Pina no Teatro Municipal de São Luiz, na noite de 7 de Dezembro de 2019, no espectáculo dos 50 anos de carreira de João Braga, um dos muitos fadistas que acompanhou ao longo da sua vida cortesia ESTELLE VALENTE

Com uma memória capaz de fazer inveja a uma biblioteca de história contemporânea, Joel Pina recordava-se dos mais ínfimos detalhes da sua biografia artística: das gravações de discos às tournées internacionais, dos concertos aos pequenos episódios, acasos e curiosidades da micro-história que constroem o puzzle da narrativa mais longa. Foi assim na Conversa de Museu, moderada por Nuno Pacheco, que celebrou o seu 99.º aniversário no Museu do Fado. Apaixonado pela vida e com uma jovialidade surpreendente, Joel continuou a tocar até ao fim, a cultivar o prazer da amizade e das coisas simples da vida, profundamente acarinhado por todos quantos tiveram o privilégio de o conhecer.

Ao longo de cerca de 80 anos de vida artística, Joel Pina recebeu as homenagens, justas e merecidíssimas, que o País lhe dedicou. Em Setembro de 2020 a Câmara Municipal de Lisboa prestou-lhe homenagem no Teatro Municipal São Luiz, num comovente concerto celebrativo do seu Centenário. Revisitaram-se os temas gravados e as inúmeras vozes que ao longo dos últimos oitenta anos partilharam estúdio e palco com este nome maior da música portuguesa. Hoje, vamos poder rever este concerto na RTP 1 e nele, o legado maior de integridade, humanidade e talento com que Joel Pina continuará a inspirar-nos a todos.

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