A economia cultural da comunicação política online

É algo profundamente antidemocrático deixar na mão de privados a gestão autónoma da comunicação política em rede.

Já passaram umas semanas desde que o fim do mandato de Donald Trump desencadeou uma série de acontecimentos reveladores das ambiguidades que cercam o funcionamento da esfera pública contemporânea. Vamos resumir os factos já conhecidos: depois do assalto ao Capitólio de Washington as grandes plataformas de comunicação fecharam as contas do Presidente dos EUA. Não apenas Twitter, Facebook, YouTube e Amazon bloquearam os seus serviços de comunicação ao ex-presidente e aos seus apoiantes, mas também Reddit, Pinterest, TikTok, Twitch e Shopify tomaram iniciativas semelhantes.

O resultado demonstra que a desinformação online sobre a fraude eleitoral diminuiu 76%, ou seja, a desativação da patrulha digital trumpiana funcionou, a propaganda ficou sem instrumentos. A questão que ficou em aberto é se então podemos deixar que os conflitos político-mediáticos possam ser resolvidos por decisões tomadas entre um restrito grupo de empresários.

As reações à decisão de banir as contas do ex-presidente dos EUA geraram dois géneros de comentários que, apesar de plausíveis, ficaram aquém de assinalar os problemas mais estruturais do ecossistema político e económico sobre o qual assenta a cena mediática contemporânea. De um lado criticou-se o momento tardio em que estas plataformas assumiram tal responsabilidade, do outro denunciou-se a arbitrariedade do gesto censório. Aliás, se contextualizarmos o cenário jurídico dos EUA deparamo-nos logo com a extrema condescendência da primeira emenda, que nem o elogio do nazismo censuraria.

Os proprietários destas plataformas fizeram os seus cálculos políticos, a parábola descendente do presidente Trump retirou-lhes os medos e facilitou-lhes a busca de uma nova virgindade. A oportunista mudança de rumo editorial não é algo que deva escandalizar. Considerando a ausência de precisos e sólidos códigos deontológicos internos às plataformas, o que deveria escandalizar seria a falta de regras políticas que as obrigassem a redigi-los de forma clara e respeitá-los, indicando previamente quais os limites e critérios de atuação que deveriam respeitar. Tais plataformas, apesar de serem privadas, desempenham um papel fundamental na vida pública de cada país, estruturam as condições da vida em comum, razão pela qual o interesse público deveria ser o eixo das suas orientações.

Paradoxalmente, teremos que agradecer Trump e aos seus adeptos se, finalmente, as instituições políticas ocidentais começarem a dar-se conta dos prejuízos provocados pela sua reiterada irresolução no campo da soberania digital. Há anos que a miopia das instituições políticas ocidentais é corresponsável pela poluição dos debates públicos e pela falta de concorrência no mercado digital. É algo profundamente antidemocrático deixar na mão de privados a gestão autónoma da comunicação política em rede.

O território das redes sociais pertence à infoesfera, onde público e privado coexistem e para não se prejudicarem mutuamente precisam de um enquadramento ético e normativo que só a política pode e deve fornecer. Por exemplo, um ginásio é um espaço privado aberto ao público, assim como um parque é um espaço público que pode ser gerido por privados. Ambos os contextos, para funcionarem de forma pacífica, precisam de se conformar aos princípios legais que guiam a articulação entre bens e recursos comuns.

É preciso corrigir, em primeiro lugar, dois erros epistemológicos que, até agora, propiciaram as estratégias editoriais das “big techs”, erros que tiveram repercussões na vida económica e sociopolítica de cada país. Foi um erro de presunção cultural pensar que plataformas utilizadas globalmente possam ser governadas com lógicas estadunidenses. Não se trata apenas da necessidade de contrabalançar as lógicas lucrativas com princípios ético-políticos, mas entender que tais princípios variam em cada país. Os efeitos de decisões editoriais tomadas na Califórnia têm consequências sociais transnacionais. O que afeta a vida quotidiana e social de milhares de milhões de pessoas não pode ser administrado a partir de uma cultura de província — 90% dos utilizadores do Facebook reside fora dos EUA.

O que é considerado legitimo ou ilegítimo nos EUA não o é nas realidades dos outros continentes (são famosos os conflitos desencadeados por posts, aparentemente inócuos para um norte-americano, publicados em países asiáticos e africanos). Outro erro estratégico que subjaz à inércia ética das entidades públicas e privadas do setor, foi o de presunção tecnológica. Como assinalado por Alec Ross (As indústrias do futuro) e Mark Thompson (Enough Said: What's Gone Wrong with the Language of Politics?), é uma falha ideológica pensar que a autorregulação das plataformas de redes sociais pudesse ser administrada pelos engenheiros das corporações, que pouco sabem de geopolítica, de processos participativos culturalmente enraizados, de psicologia, história e análise da linguagem. Confiar na análise computacional dos comportamentos socioculturais e psicossociais foi a premissa do mal-entendido: a tecnologização das respostas a problemas cujas raízes e consequências extravasam a tecnologia.

O objeto de discussão não deveria ser, portanto, reclamar ou aplaudir uma decisão de censura tão drástica (banir um presidente depois de ter rentabilizado por anos a sua propaganda digital). Fecharam-se algumas contas online, mas as ambiguidades rebentaram com maior nitidez. A discussão deveria focar-se no que este acontecimento revela: a incapacidade política, até ao momento, de legislar e definir democraticamente os princípios de uma “correta” participação nas plataformas.

Estabelecer o perímetro legal do funcionamento de uma plataforma de comunicação implicaria a instituição de uma autoridade política local baseada na garantia dos princípios da Constituição do país de pertença. Tal como na regulamentação europeia sobre a proteção de dados. Com base nestes princípios decidir-se-ia como entrar e permanecer dentro de um espaço info-comunicacional onde se promovem e publicitam opiniões.

Neste sentido, podemos ver como muito positiva a maneira como a UE está a reconquistar a soberania digital, definindo as prioridades e as regras do jogo da infoesfera dentro do espaço europeu. Para regulamentar estas plataformas, a UE apresentou nas últimas semanas o Digital Service Act e o Digital Market Act, reivindicando a liderança na adoção de leis que limitem fenómenos como o discurso de ódio e ataques racistas online, incitamento à violência, fake news e outros conteúdos ilegais.

Ademais, conforme o Regulamento Geral sobre a Proteção de Dados, a vida digital dos europeus (os seus dados) fica tutelada pela normativa europeia em qualquer território extraeuropeu. É o início de um novo percurso que poderá conduzir à discussão sobre o desequilíbrio democrático e económico determinado pelos oligopólios e abrir caminho para uma competição regulamentada, proporcionando pluralismo e mediação entre os diferentes atores sociais (dentro e fora da rede). Neste sentido, é expectável que a nova administração americana irá retificar radicalmente a seção 230 da lei sobre as comunicações que isenta as plataformas digitais das responsabilidades sobre os conteúdos que veiculam.

Existe, todavia, uma outra questão que não deve ser negligenciada, um assunto fundamental que poderia tornar-se o gatilho do resgate ético e social da política. Se a política e os governos querem demonstrar que o poder não lhes escapou pelas mãos, se pretendem inverter a tendência global das últimas décadas que subordinou os representantes eleitos aos grandes grupos económicos e às suas lógicas operacionais, então, temos agora a ocasião de exigir aos oligarcas do digital uma contribuição fiscal consistente em cada Estado onde operem com os seus negócios.

Sabemos como a pandemia proporcionou uma concentração ainda maior de riqueza nestas empresas, também sabemos como os Estados sofrem crises orçamentais gigantescas. O que não sabemos é a razão pela qual a política receia desempenhar o papel de protagonista em matéria de justiça económica. Muitos dos problemas democráticos e cívicos desta época assentam neste desequilíbrio emblematicamente radicalizado pelas corporações digitais.

Num contexto democrático o direito de expressão reconhece os seus limites na medida em que se parte do pressuposto de que ele deve harmonizar-se com outros direitos. Só em democracia os limites à liberdade de expressão não são censura, mas respeito da comunicação cívica e civilizada, aquela que não prejudica ninguém e é saudável para todos. Todavia, é preciso ressalvar também outro género de riscos determinados pelas relações de força desiguais na produção do discurso social em contextos democráticos. O outro lado da moeda da censura arbitrária manifesta-se quando uma cultura dominante entende que, para se consolidar e reproduzir, deve sustentar-se não na proibição de manifestar e exprimir ideias, mas na solicitação sedutora e impelida em pensar e pronunciar-se sobre ideias específicas.

Entre censura e conformismo cultural terá que consolidar-se uma ética pluralista assente no exercício da infodiversidade, tendo em conta como esta deveria retraduzir-se nos âmbitos da economia de mercado, da produção cultural, da mediação jornalística, das infraestruturas tecnológicas e jurídicas. Estas dimensões entrelaçam-se constantemente constituindo o heterogéneo cenário dentro do qual tentamos estabelecer os nossos compromissos individuais e coletivos. 

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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