Livros não temos, mas agulhas ainda há muitas

Se os livros nos faltam, sobram-nos agulhas, num massacre afiado que tomou papel central nos noticiários e na propaganda anti-pandémica.

Todos sabemos que são perigosos. Aquelas capas, aquelas letras, aquelas superfícies expostas ao ar, a que qualquer vírus depressa se agarra usando com astúcia as minúsculas espículas que conhecemos dos desenhos. Foi certamente por isso que proibiram os livros de ser vendidos directamente nas livrarias (que fecharam) e também em supermercados (para não beneficiar, neste período, uma tão desleal concorrência). Assim, quem trouxer para casa um pargo, talvez possa aventurar-se à Truta de Schubert, mas nunca ao Peixe Dourado de Le Clézio. Esse, terá de o encomendar pela internet e esperar. Como é de papel, é peixe que não se estraga.

Por isso e não só. Também pela habitualmente tumultuosa frequência das livrarias nacionais. Quem é que, passeando no Chiado lisboeta ou na Baixa portuense, não teve já de se afastar dos passeios, tal a quantidade de gente que transborda desses antros de papelada, só para sair de lá com sacos cheios de livros? Não é uma ameaça à saúde, em tempos de pandemia?

A bizarria aqui caricaturada já foi comentada por muita gente, e só no PÚBLICO tivemos os artigos de António Carlos Cortez, Clara Capitão ou Nelson Nunes. Do governo, sempre tão lesto a despachar outras trivialidades, nada se ouviu sobre o assunto. Os livros, que na mais recente sebenta anti-covid-19 foram relegados para o lugar de bens “não essenciais”, têm pela frente um longo sono, em prateleiras de lojas compulsivamente fechadas ou tapados com lonas e plásticos (como se fossem pornografia) nos lugares onde, existindo, não se podem comprar.

Mas se os livros nos faltam, sobram-nos agulhas. Aliás, a agulha tomou papel central nos noticiários e na propaganda antipandémica. Usando um trocadilho do acordo ortográfico, tornámo-nos espectadores de espetadores. Gente que, com a melhor e a mais nobre das intenções, vai espetando braços na procissão vacinatória que nos coube. E as câmaras, sem outra novidade que não seja a cor ou a forma dos tecidos que se afastam para a agulha penetrar as carnes, vão captando tudo: o momento em que a agulha é experimentada, o êxtase da aspiração do líquido do minúsculo frasquinho que o contém e depois o momento de ser cravada em braços de todo o tipo, gordos, magros, flácidos, elegantes, bonitos, feios. Um tédio de agulha em riste, repetitivo, mas alcandorado a gesto simbólico e em modo contínuo.

Era necessário tal desfile de picaduras, a lembrar o “Ai chega, chega, chega, chega ó minha agulha” da Beatriz Costa? Não seria, se outra coisa de interessante se filmasse. Mas à falta de melhor, sempre que se fala em Pfizer, AstraZeneca ou Moderna (nomes que o cidadão vai decorando como se fossem jogadores de futebol), lá vem a salvadora agulhinha, um massacre para quem tem fobia a tais objectos afiados e um saudoso deslumbre para quem lhe dá outros usos. Seria diferente, se o alvo das agulhas fossem, não braços mas glúteos? Certamente, a menos que os noticiários passassem a ostentar bolinha vermelha nas passagens mais… picantes.

Mas aquele acto mais simples, mais essencial, que já vem de epidemias antigas e se aconselhou tanto no início, o simples lavar de mãos? Onde está, que as câmaras não o captam? Será porque as torneiras são feias? Será que a água a correr irrita os telespectadores? Será porque as mãos são menos fotogénicas do que os ombros, sobretudo neles se espetarem agulhas?

Mesmo na ausência de livros, tais escolhas alimentam mutações culturais. Coisas que antes eram associadas a vícios ou temores, como agulhas, seringas, doses, álcool, máscaras, delação ou DGS, agora são símbolos benignos de saúde. Na agulha, substituímos e toxicodependência pela vacinodependência, tanto maior quanto escasseiam as doses (onde é que já ouvimos isto?). E a delação, agora, é também benigna. Em tempos idos, quando um vizinho fazia algo ilegal havia alguém pronto a denunciá-lo à DGS. Agora também, só que a DGS já não é a sinistra polícia política do Estado, mas sim a Direcção-Geral da Saúde, e o acto ilegal já não é uma reunião numa cave para uma leitura colectiva de Marx mas sim uma reunião numa cave para rodadas colectivas de cerveja com queijos, presunto e uns mariscos à mistura.

Tudo isto dava um livro. Se alguém o escrevesse. E se houvesse lugar onde comprá-lo.

Sugerir correcção
Ler 9 comentários