Chick Corea, quando o génio exige um lado fútil

Entre o apogeu da arte e do piano de Chick Corea e a banalidade da sua entrega a ritmos comerciais há um muro aparentemente inseparável e incompreensível.

Há músicos tão geniais e que nos marcam tanto ao longo de tanto tempo que chegam a tornar-nos condescendentes com as suas desinspirações. Não se trata de entrar na velha e pífia discussão sobre uma suposta cedência de Miles Davis ao “star system” do rock na viragem dos anos 60. Ou no desdém de Wynton Marsalis pelo seu irmão Brandford no momento em que este se juntou a Sting para provar, em Bring on The Night, o balanço que a tropa do jazz pode dar ao rock. No caso de Chick Corea é pior. Entre o apogeu da sua arte e do seu piano e a banalidade da sua entrega a ritmos comerciais há um muro aparentemente inseparável e incompreensível. Mesmo na sua banda seminal do princípio dos anos 70, os Return to Forever, nada liga a inspiração e o brilho do álbum homónimo e a piroseira de Romantic Warrior.

Mas, então, porque que é que o anúncio da morte de Chick Corea é assim tão tristemente dramático? Como podemos condescender com um pianista capaz de ceder na exigência, ou da arte, para se expor às facilidades do comércio, ou da moda? Podemos porque Chick Corea foi sempre um iconoclasta. Um latino num mundo de negros inspirados por instrumentos europeus. Um músico que sempre balanceou entre a seriedade e o risível na música. Entre pautas de compositores clássicos e lendas populares de gnomos ou histórias futuristas de viajantes galácticos. Entre Now He Sings, Now He Sobs (1968), que ajudou a moldar a fisionomia do trio piano/bateria/contrabaixo, e o passo seguinte nas bandas de Miles Davis, que introduzem a electricidade no jazz e afirmam a fusion (ou o jazz-rock), a evolução poderia parecer paradoxal. Os anos seguintes mostraram que se tratava de coerência.

Dos Return to Forever aos Circle, passando pelos surpreendentes discos assinados em nome próprio entre 1976 e 1978, tivemos momentos de excelência da composição e de arranjo, a mestria nas improvisações no piano a solo ou essa estranha paixão pela música de Espanha que celebra no ora magnífico, ora boçal My Spanish Heart. Ouvimos também duetos extraordinários com Herbie Hancock (An Evening with Chick Corea and Herbie Hancock, 1980) ou com o vibrafonista Gary Burton num extraordinário concerto em Zurique (1980). A cada passo, e ao longo da carreira, Chick Corea regressaria ao piano do jazz clássico – Trilogy, de 2018, com Christian McBride e Brian Blade é um disco enorme. Mas a exemplo do mestre Miles não resistiu aos apelos da música de dança, aos ritmos estridentes do sintetizador, às modas que os devotos da sua obra clássica (ou até da sua fusão dos anos 70) têm dificuldade em entender.

Chick Corea, que morreu esta terça-feira aos 79 anos, é um músico que marca. Foi, juntamente com Frank Zappa, o maior culpado pela transição do rock para o jazz no final da minha adolescência. Vi-o uma mão cheia de vezes ao vivo, entre a emoção e a irritação desiludida. Regressei com frequência às suas grandes obras. Entrevistei-o para o PÚBLICO num hotel no Porto aí por volta de 1994 para o ouvir dizer que só se queria divertir. 

Talvez esteja aí o segredo do seu génio. Talvez o jazz luminoso e límpido que ajudou a moldar não dispensasse esse gene descontraído, italiano, dado à futilidade.

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