Política, 0 – Jornalismo, 0

É penoso, não valoriza a profissão, ver os jornalistas, de microfone na mão, mendigando declarações políticas que em nada contribuem para o esclarecimento das questões que interessam os portugueses.

“Nos últimos dois ou três anos, verificou-se uma concentração exclusiva sobre os interesses dos vértices e sobre as suas personagens. Nunca tal se tinha verificado com esta amplitude.”
Pier Paolo Pasolini, Corriere della Sera, 1.8.1973

No suplemento Ípsilon deste jornal de 5.2.2021, António Guerreiro, na sua crónica semanal, lamentou que os telejornais tivessem atingido a duração de longas-metragens, e sempre com o mesmo filme: “Sem negar a gravidade da pandemia, devemos perceber que quanto mais este jornalismo obeso e com a cegueira da enumeração se aplica a mostrar, menos dá a ver, quanto mais imagem nos fornece mais visão nos confisca, quanto mais nos quer convencer de que toca a realidade e a verdade, mais produz ficção e mentira.”

Esta pesada denúncia evidencia como a saturação da informação com aspectos irrelevantes mata a informação. Idêntica constatação se pode fazer sobre o tratamento jornalístico da vida política, e com mais pesadas consequências, e não só pelas televisões. Está instituído um sistema de vasos comunicantes entre os media e os órgãos políticos de tal modo obsessivo e transbordante que se pode dizer, sem o risco de exagerar, que, se o Governo e os partidos se calassem, a imprensa e as televisões ficariam elas próprias mudas, como se a realidade do país se limitasse a São Bento e arredores, e a missão dos jornalistas fosse essa de cronistas das pequenas e grandes intrigas palacianas, ignorando os interesses dos cidadãos, as suas preocupações, as suas ambições, as suas vitórias, ou seja, a vida real do país. O contrário também se verifica, quando os jornalistas se assumem como altifalantes de personagens políticos, alguns caricaturais, que sem eles não existiriam nem para os militantes da mesma cor, nem para os eleitores. As duas partes drogam-se mutuamente e iludem-se, e iludem-nos, para que a ficção que criam seja o país. Ou, como diria Pasolini no artigo referido, “apenas o que sucede dentro do Palácio parece digno de atenção e interesse, tudo o resto são minudências, rumores, coisas sem forma, de segunda. (…) [Mas] o que acontece fora do Palácio é qualitativamente, ou seja historicamente, diverso do que o que acontece dentro do Palácio, e infinitamente mais novo, assustadoramente mais avançado.”

O tratamento jornalístico da eleição presidencial foi mais um exemplo revelador desta relação doentia, em que os media não conseguiram ganhar distância do facto político, sentindo-se, pelo contrário, como dele fazendo parte, e disso se reclamando. É para mim óbvio que o papel dos jornalistas não é o de dar a mesma atenção a todos os candidatos – a maioria dos quais desejou apenas aproveitar a ocasião para dispor de uma tribuna, assim desprestigiando a solenidade do acto eleitoral –, mas sim o de agir segundo a representatividade que se lhes atribui, ponderando o que, comprometidamente, devem transmitir aos leitores e aos telespectadores. Os media não são um receptáculo neutro e os responsáveis pela gestão da informação devem diferenciar o tratamento a dar aos acontecimentos que julgam dever relatar. Se tudo é tratado do mesmo modo, tudo se equivale, nada existe.

No contexto das últimas eleições foi-me doloroso ver o modo como, no dia das eleições, foi feita a “caça” ao candidato Marcelo Rebelo de Sousa, em particular quando regressou a casa em Cascais, depois de ter ido votar a Celorico da Beira. Os jornalistas acotovelavam-se à porta da sua casa para lhe extorquir não se imagina qual declaração fundamental, numa postura de esmolar umas suas palavras. Eram provavelmente estagiários, sub-proletários, cuja exploração o próprio candidato-Presidente já denunciara em 2017 num Congresso de Jornalistas, salientando que constituíam pelo menos um terço da classe, num universo de mais de 7000 profissionais.

De uma maneira geral, este tipo de comportamento não dignifica nenhuma das partes, mas repete-se quotidianamente. É penoso, não valoriza a profissão, ver os jornalistas, de microfone na mão, mendigando declarações políticas que em nada contribuem para o esclarecimento das questões que interessam os portugueses. É um jornalismo de vão de escada, de porta da rua, que não nobilita o jornalismo nem a política. Se urge comunicar, significativamente, as mensagens importantes não se proclamam a todas as esquinas. A banalidade de tudo isto – espectáculo que se justifica antes e depois dos futebóis – não se coaduna com a responsabilidade de quem Governa e de quem deve interpretar os acontecimentos. Sou até levado a pensar que o crescente absenteísmo eleitoral tem aqui uma das suas raízes, de tal forma é assim desvalorizada a acção política, sem que os cidadãos tenham sido esclarecidos.

Agora o jogo vai ser o de saber se o prof. Marcelo Rebelo de Sousa vai deixar cair a mascara de Dr. Jekill e passar a Mr. Hyde, pronto a alvejar o Dr. António Costa, talvez não mortalmente, para lhe dar o tempo de fazer a remodelação ministerial que os oráculos políticos, imutáveis esses, e previsíveis, esperam com tanta ansiedade para mudarem de menu. Mas sempre sentados à porta do palácio.
 

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