O divã vazio

Não sei porque lhe chamo Professor. Talvez porque me tenha vindo assim indicado, talvez porque, para além de psicanalista, o Professor tenha sido efectivamente professor em universidades ou, talvez, porque eu sinta que, consigo, tenho uma espécie de aulas de vida.

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"Já vim buscar a criança e estamos as duas a precisar de um rumo" Carly Kewley/Unsplash

Faz um mês que não temos sessão. Liguei-lhe, como sempre, para conversarmos, para fazermos psicanálise, para desabafar acerca dos meus problemas, falar da desordem geral das coisas, falar da vida, dos sonhos, dos pesadelos. Recostei-me no carro, o banco reclinado para tentar o efeito divã, sendo que já há tempos que não posso deitar-me mesmo no divã da sua sala, por causa da pandemia, disto que se passa e já se sabe e já cansa.

O carro tem funcionado como cápsula, um esconderijo sem crianças a gritar, sem barulhos que interrompem raciocínios e bloqueiam emoções. O altifalante do carro ajuda a que a sua voz ressoe no ar e é como se falasse com Deus. Sei que o Professor iria ter coisas a dizer sobre esta associação. Não sei porque lhe chamo Professor. Talvez porque me tenha vindo assim indicado, talvez porque, para além de psicanalista, o Professor tenha sido efectivamente professor em universidades ou, talvez, porque eu sinta que, consigo, tenho uma espécie de aulas de vida. Sei o quanto detesta esta comparação. “Não são aulas e quem acha isso não aprendeu nada”, imagino-o a dizer. Ficou Professor e já não consigo tratá-lo de outra forma. É um tratamento solene e, ao mesmo tempo, misterioso, como se conjurássemos planos clandestinos, como se pertencêssemos a uma sociedade secreta e eu fosse a aprendiz e o Professor o mestre e, de certa forma, talvez seja isso, embora, mais uma vez, tenha a certeza de que iria rejeitar o paralelismo.

Liguei-lhe, então, há um mês, para que déssemos início a mais uma sessão semanal.

— Olá, Professor!

— Olá. Estou internado com covid. Aqui não consigo fazer a sessão.

Já fiz vários tipos de terapia. O bom de ter uma mãe psicoterapeuta é ter tido, durante o meu crescimento, um vasto leque de métodos terapêuticos à disposição, sem preconceitos associados. A escolha não era empurrada, mas aceite com naturalidade e até algum entusiasmo pela minha mãe. Quase como se validasse a importância do seu dever o facto de, também eu, à semelhança de todos, precisar da ajuda de alguém.

Tive psicólogas na infância, após a separação dos meus pais, essas, sim, impelidas pela minha mãe, que achava que eu precisava de dissolver o trauma. Acontece que marcavam a psicóloga para a mesma hora do Batatoon e eu, que até então estava calma, ao ser arrastada para uma sala com uma senhora de óculos a mostrar-me desenhos e figuras abstractas para lhe dizer o que via, sendo que o que eu queria verdadeiramente ver, o Batatoon, me estava vedado por aquele compromisso esquisito, ficava profundamente desgostosa e enfrentava a injustiça com as birras mais demoníacas que se possa imaginar. Birras essas a que a psicóloga atribuía gravidade, o que fez com que aquilo ainda durasse um tempo, até que todos desistiram, como se eu fosse um caso perdido, e eu pude voltar às minhas tardes pacatas a ver o Batatoon.

Visitei vários consultórios, ao longo dos anos, de métodos mais ou menos imersivos, mais ou menos esotéricos. Análise bioenergética, reiki, terapia sacrocraniana, astrologia. Incenso, vestidos de linho orgânico, vozes baixas, abraçar desconhecidos, caminhar nas brasas, bater com almofadas, bongos, cristais, coaching, constelação familiar, búzios, grounding, cartas, passei por tudo, tal era a sede de espreitar para o futuro e resolver o passado. Queria alinhar chacras e expurgar demónios, encontrar respostas sem passar por perguntas, ser desvendada como uma profecia, sair de cada consulta com uma bússola para a vida e o olhar de quem juntou o puzzle e leva o mundo todo no bolso. Estava à procura da revelação derradeira que me revelasse, do pêndulo que me alinhasse, do horóscopo que me guiasse. Mas, ao contrário de tantas pessoas, a quem estes e outros métodos mudaram a vida, eu saía sem o que procurava. Não me demorei nem me aprofundei em nenhum destes sítios. Fui mais uma turista do que uma participante mergulhada nas experiências. Alguém que comparece, mas não se envolve, que desbobina tudo, mas não chega a lado nenhum.

Até que o encontrei, Professor. Veio-me recomendado, como se fosse uma viagem inesquecível ou um livro fundamental. O método era o primeiro, aquele que alguns consideram já ultrapassado: psicanálise pura. Só conversa, só infância, só inconsciente. Lembro-me de várias fases, ao longo deste percurso com o Professor. De querer impressionar, como uma aluna que quer sair com boa nota. De querer elogios, como uma filha que fez bem uma tarefa. De querer consolo, como uma menina que esfolou o joelho.

Cheguei à primeira consulta com a minha biografia ensaiada. Sabia datas, achava saber indicar traumas, enumerava acontecimentos por ordem cronológica, precisava as entradas e saídas de elementos cruciais para a minha vida, como uma narradora experiente, já habituada a contextualizar-me a vários terapeutas. Despejei a minha história como quem descarrega uma mercadoria, como quem entrega um dossiê e diz: “Isto sou eu”.

Mas o Professor não se interessou pela linearidade, nem pelo que eu sabia. Interessou-se pelo que eu não sabia, pelo que eu não me lembrava, pelo que eu escondia. Interessava-se mais quando eu me calava do que quando eu contava. A sensação que tenho é que, não tendo nunca rasgado o meu dossiê, o leu todo com carinho e o pôs de lado, como um professor (lá está) que só leu parvoíces, mas não condenou o pupilo.

Já tinha ouvido falar muitas vezes da criança interior. Mas nunca me tinha apercebido da sua existência indelével. Era como se viesse num carro, a seguir a estrada, atenta ao percurso, a querer chegar a horas ao destino, preocupada em fazer as paragens certas, mas tivesse deixado lá no início da viagem uma criança sozinha, abandonada. O Professor ouvia-me narrar o caminho, mas o que mais lhe importava era que eu não deixasse a criança lá atrás esquecida, provavelmente aterrorizada. E, assim, uma vez por semana, lá me obrigava a fazer marcha atrás e a ir ter com a criança.

A famosa imagem do icebergue, em que a ponta é o consciente e a montanha enorme e submersa é o inconsciente, começou, finalmente, a fazer sentido. O Professor tornou-se o intérprete desse meu mundo, tão vasto e desconhecido. A primeira vez que chorei numa sessão, o Professor perguntou-me: “Se o choro falasse, o que diria?” E sinto que foi aí que começámos a chegar a algum lado.

Desde essa chamada, há um mês, que não sei nada de si. Imagino a sua sala silenciosa e o divã vazio, desocupado. Tenho vindo na mesma para o carro e tenho-lhe ligado. Mas não surge a sua voz a apaziguar as minhas lamúrias.

Decidi escrever-lhe porque não temos sessão e não sei o que fazer ao silêncio. Se tivéssemos sessão, eu começaria por dizer que estou preocupada consigo. Mas, se tivéssemos sessão, era sinal de que o Professor não estava internado. Depois chegaríamos à conclusão de que a minha preocupação consigo reflecte uma preocupação egoísta comigo, porque, sem si, sou uma pequena náufraga num oceano de incompreensão e o Professor funciona como uma bóia. Depois, talvez falássemos desta imagem, da bóia.

Hoje o que gostava de dizer-lhe é o quão imprescindível o Professor é na minha vida. Um guardião da minha saúde mental. Um líder de claque, sempre a torcer pela minha felicidade. Tal como se diz das mães, creio que o seu trabalho seja o de tornar-se cada vez mais desnecessário. Mas ainda estamos longe disso. Só espero que fique bom depressa. Já vim buscar a criança e estamos as duas a precisar de um rumo.

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