Um Aprazível Suicídio em Grupo

No país dos dois Pritzkers, a arquitectura está a tornar-se irrelevante graças aos arquitectos.

Um Aprazível Suicídio em Grupo é o título de um livro de Arto Paasilinna (Relógio D'Água, Janeiro de 2010) que conta a história de um grupo de finlandeses que embarcam numa excursão de autocarro em busca do melhor precipício para se lançarem. Encontram o seu destino nada mais nada menos do que em Portugal, numa falésia junto à Fortaleza de Sagres.

Dificilmente o autor deste livro deslindaria na sua narrativa uma metáfora para a situação actual da arquitectura em Portugal. Mas é este título que me vem à cabeça quando penso no estado da profissão e da disciplina nos dias de hoje por terras lusas: Um Aprazível Suicídio em Grupo. Os arquitectos entraram de livre vontade no autocarro que os levará ao precipício. Como no livro de Arto Paasilinna, haverá excursionistas resignados, outros fatalistas, outros ainda ingénuos e inocentes que acham que o autocarro vai rumo ao sucesso, e haverá também os que tentam convencer a excursão a mudar de rota mas que, depois de muitas tentativas frustradas, desistem.

O processo de degradação da profissão de arquitecto não é recente. Iniciou-se com a liberalização do mercado e a consequente revogação da tabela de honorários, e prolongou-se até aos dias de hoje em que os serviços de arquitectura são leiloados pelo preço mais baixo. A redução da arquitectura ao seu valor económico próprio e acrescentado é um processo que resulta, não só das condições externas definidas pelo mercado, mas principalmente das condições internas criadas pela própria disciplina e profissão.

Num momento em que o Estado se propõe construir e reabilitar o parque habitacional das principais cidades em Portugal — tarefa que negligenciou nas últimas décadas — pouco ou nada se ouve falar sobre o que é habitar no século XXI. A discussão pública sobre este processo estrutural e marcante para o desenvolvimento das nossas cidades resume-se a uma discussão sobre números. Quantos fogos vão ser construídos? Qual será o preço destas habitações? Quanto dinheiro vai o Estado investir nestas habitações? E se estas são questões legítimas a que o Estado, enquanto promotor, deve dar resposta; não são estas as únicas questões a que os arquitectos devem responder quando chamados a intervir. Cabe aos arquitectos semear na sociedade a discussão sobre como é que queremos habitar no século XXI. Mas quando foram chamados a intervir, a resposta dos arquitectos foi fraca.

Em 2020 foram lançados vários concursos públicos para a conceção e elaboração de projetos de edifícios de habitação colectiva. O Instituto de Habitação e Reabilitação Urbana​ (IHRU) lançou três concursos no âmbito do Projecto Habitacional Almada Poente e o Município do Porto lançou um concurso para a construção de cinco prédios de habitação no Bairro de Lordelo do Ouro.

À pergunta “Como é que queremos habitar no século XXI?”, as propostas premiadas respondem com nada de novo, ignorando as alterações estruturais significativas que se verificaram nos nossos modos de habitar nas últimas décadas. Não há propostas para novas formas de viver em conjunto que abarquem a diversidade de agregados familiares que constituem a sociedade contemporânea e potenciem formas inovadoras de coabitação e organização colectiva de vizinhança. Não há propostas de tipologias habitacionais fora da lógica T1, T2, T3, definida pelo mercado imobiliário. Não há propostas de tipologias habitacionais que integrem o espaço de trabalho potenciando a autonomia económica dos indivíduos e a fomentação de micro economias locais. Não há propostas que vão além dos mínimos legais em termos de sustentabilidade ambiental e eficiência energética. Não há propostas sobre métodos construtivos inovadores, baseados no conceito de economia circular, e apoiados em sistemas digitais de implementação em obra.

As propostas premiadas nestes concursos apresentam-se através de um conjunto de imagens abstratas e ausentes de conteúdo social ou político. Características que são consagradas por júris constituídos maioritariamente por colegas de profissão, criando na opinião pública a ideia de que esse é o único contributo da arquitectura para a sociedade: uma organização estética da realidade.

Estamos perante um processo de auto-anulação da arquitectura. Ao eximir-se da sua posição crítica sobre as questões sociais e políticas relevantes para a sociedade, a arquitectura desliga-se da sua condição disciplinar tornando inevitável a sua comoditização.

Para combater a degradação económica da profissão será necessário primeiro ressuscitar o valor cultural e intelectual da arquitectura enquanto disciplina que contribui para a construção de uma sociedade mais justa e igualitária.

Cabe-nos a nós, arquitectos, impedir o autocarro de cair no precipício.

A autora escreve segundo o Acordo Ortográfico

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