Escritor pedófilo Gabriel Matzneff pede subscrição para publicar a sua defesa em livro

Denunciado o ano passado por Vanessa Spignora, que com ele manteve uma relação entre os 13 e os 14 anos (Matzneff tinha 50), o escritor caído em desgraça, sem editora que o acolha, recorre à subscrição para editar o livro que diz constituir a sua defesa. Vanessavirus custará 100 euros a cada subscritor. Um exemplar autografado tem o preço de 650 euros.

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Gabriel Matzneff numa foto de 1983 FLORENCE KIRASTINNICOS

O julgamento de Gabriel Matzneff só terá lugar, em Paris, em Setembro de 2021, mas o escritor, durante décadas conceituado membro da elite cultural francesa e que viria a cair em desgraça o ano passado, com a edição de O Consentimento, no qual a editora e escritora Vanessa Springora relata a relação que manteve com o escritor a partir dos 13 anos (Matzneff tinha 50), prepara já a sua defesa. Chegará em forma de livro, intitulado Vanessavirus, e tem edição marcada para 15 de Fevereiro. Dado que nenhuma editora mostrou interesse na sua edição, Matzneff, actualmente com 84 anos, lançou um pedido de subscrição aos leitores que ainda mantém, noticiou o ActuaLitté. Por 100 euros, os interessados receberão o livro em casa. Uma edição autografada custará 650 euros.

A pedofilia de Matzneff exposta por Springora em O Consentimento (editado em Portugal pela Alfaguara) não era propriamente um segredo. O autor não só utilizava as conquistas amorosas de crianças e adolescentes de ambos os sexos como matéria literária, descrevendo nas suas narrativas diarísticas casos como o mantido com Springora ou relações com menores enquanto turista sexual no Extremo Oriente, como o defendia em artigos na imprensa, em ensaios ou em participações em programas televisivos. À época, porém — falamos dos anos 1960, 1970 e 1980 —, no meio intelectual e literário francês, a liberdade artística e a qualidade dos textos sobrepunha-se ao conteúdo, considerando-se para além do mais, em defesa do escritor, estar-se perante obras de ficção e não de relatos de uma realidade vivida. Acresce a isso um contexto muito específico, no pós-Maio de 1968, em que algumas correntes libertárias minoritárias, em que Matzneff se incluía, defendiam que crianças e jovens deviam autodeterminar-se sexualmente como forma de derrubar o conservadorismo da moral vigente.

Manto de silêncio

Em Julho de 2020, Gabriel Matzneff afirmara numa entrevista que a sua defesa surgiria no seu devido tempo, e que seria um livro. “Sou um escritor hoje odiado, amaldiçoado, mas escrever continua a ser a minha arte e a minha salvação, acima do desespero para que fui repentinamente lançado”, declarou ao canal televisivo BFMTV. A revelação da edição por subscrição da obra não provocou, porém, qualquer sobressalto assinalável. Cai sobre Matzneff um manto de silêncio. Vanessa Springora declinou comentar, aqueles que receberam o pedido de subscrição e a maioria dos editores contactados pelo ActuaLitté falam apenas em off. “Em primeiro lugar, quem aceitaria subscrever a publicação de um novo livro no qual ele conta sabe-se lá o quê, na mesma linha dos seus escritos anteriores? Depois, ser incluído na lista dos vergonhosos financiadores do próximo Matzneff é algo que ninguém hoje consideraria fazer”, afirmou um dos editores contactados.

Até Janeiro de 2020, a obra do premiado Matzneff continuava publicada e disponível em algumas das mais prestigiadas editoras francesas. Tudo mudou com a edição de O Consentimento. O livro de Vanessa Springora motivou um processo judicial contra o escritor por promoção à pedofilia, as editoras retiraram os seus livros das livrarias, o meio literário francês renegou-o num ápice. Poucos meses depois, em Março, outra vítima de Matzneff, Francesca Gee, juntou a sua voz à denúncia de Spingora, relatando numa série de entrevistas com o New York Times a natureza da relação que manteve, aos 15 anos, com o escritor, que contava então 37.

Se, para Matzneff, as relações com ambas se fundavam numa profunda e partilhada paixão — chamou-lhes dois dos grandes amores da sua vida —, o retrato que as então adolescentes retiveram e contam agora dão conta de uma realidade completamente diferente: uma relação predatória, sufocante, fundada no poder que um homem adulto e influente conseguia exercer sobre elas e na impunidade que lhe conferia o seu estatuto (os pais que fechavam os olhos, os médicos e médicas que não só ignoravam os sinais, como davam o apoio necessário, a polícia que não dava sequência às denúncias, dado tratar-se de um homem célebre e respeitado).

Logo após a publicação do livro de Vanessa Springora, a polícia francesa emitiu um comunicado em que exortava outras vítimas de Matzneff a contactarem as autoridades. Poucos meses depois, Francesca Gee relatou o seu caso. No início deste ano, rebentou novo escândalo entre a elite francesa, quando a jurista Camille Kouchner acusou o seu padrasto, o politólogo, comentador político e ex-eurodeputado Olivier Duhamel, de ter abusado sexualmente do seu enteado, Antoine, irmão gémeo de Camille, quando este tinha 14 anos.

A denúncia, entretanto confirmada pelo irmão, mas negada por Olivier Duhamel, hoje com 70 anos, foi feita no livro La Familia Grande, assinado por Camille. Nele, a jurista conta que a sua mãe, a académica e escritora Evelyne Pisier, falecida em 2017, escolheu manter o silêncio quando o seu filho denunciou o padrasto.

“Decidi escrever porque já não podia ficar em silêncio. Este livro nasceu da necessidade de dar testemunho do incesto e de mostrar como isto durou tantos anos, durante os quais foi muito, muito, difícil livrarmo-nos desse silêncio”, explicou a autora do livro, citada pelo jornal Les Echos.

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