Uma vacina contra a propaganda

Não há registo de nenhum país democrático em que o chefe e outros membros do Governo, durante dias a fio, fielmente seguidos pelos órgãos de comunicação social, acompanhem equipas de vacinação nos mais diferentes contextos.

1. As sucessivas e intermináveis sessões de propaganda, protagonizadas pelo primeiro-ministro e pela ministra da Saúde, a respeito da campanha de vacinação chegam a ser chocantes. Para quem, à mínima discordância ou reparo, acusa os autores do legítimo direito de crítica de “instrumentalizarem” a pandemia e as suas vítimas, estamos conversados. Uma coisa, naturalmente, é o Governo ter-se feito representar no acto inicial da campanha de vacinação e aí, num compreensível contexto de enorme publicidade, mostrar o seu empenho e apoio. Outra, totalmente diferente, é, ao longo de semanas e semanas, vermos o primeiro-ministro e alguns ministros literalmente desmultiplicados em presenças quotidianas na prestação do simples acto “médico” de vacinar. E fazerem-no invariavelmente rodeados de jornalistas, de câmaras, de microfones.

Quem segue o processo paralelo que decorre em todos os outros países – designadamente, da União Europeia – não pode deixar de ficar perplexo. Não há registo de nenhum país democrático em que o chefe e outros membros do Governo, durante dias a fio, fielmente seguidos pelos órgãos de comunicação social, acompanhem equipas de vacinação nos mais diferentes contextos. Ou há-de ser em hospitais, por causa dos profissionais de saúde, ou em lares de idosos, por causa dos seus residentes, ou em centros de saúde, por mister dos “repescados” maiores de 80 anos, ou em hospitais privados, por deferência para com a cooperação com o sector (até então excluído).

Os membros do Governo e à cabeça o seu chefe, em vez de se concentrarem nas ingentes tarefas que lhes competem, no plano nacional e até europeu, optaram por fazer propaganda com a estratégia da vacinação. Optaram pelo modo de propaganda, no meio de uma gravíssima crise nacional, em que se jogam valores humanos e sanitários impostergáveis. A transformação de uma operação logística altamente exigente numa espécie de “turismo” político diuturno, na busca incessante da “inauguração” do mais recente nicho de “contemplados”, é politicamente reprovável e eticamente censurável.

2. Uma coisa é o Governo – preferencialmente, a entidade responsável pela operação – ir dando informação sobre a forma como corre o processo de vacinação. Não se trata aí de propaganda nem sequer de publicidade política; trata-se de comunicação e informação útil, em muitos casos absolutamente necessária e até indispensável. Em primeiro lugar, porque é um assunto de interesse público prioritário para todos os cidadãos, mas também especificamente para os profissionais de saúde, os agentes da educação e os agentes económicos. Em segundo lugar, porque as informações recentes sobre as insuficiências da produção exigem esclarecimentos e adaptações. Em terceiro lugar, porque abundam as controvérsias sobre a eficácia das vacinas, nomeadamente no que se reporta aos diferentes segmentos de idade ou no que se refere às diversas variantes ou estirpes do vírus. Em quarto lugar, porque o arranque do processo em Portugal deu azo a um florescimento de casos de abuso e de improvisação por todo o território, que demandam explicação cabal e a adopção de medidas preventivas. Ninguém pede, pois, ao Governo que se demita das suas funções de informação, de esclarecimento e até de pedagogia. Pede-se, isso sim, que não faça da operação de vacinação uma campanha paralela de propaganda em que, a bem dizer, parece muito mais eficiente do que se mostra em qualquer outra área ou capacidade.

3. A insistência neste tipo de ocupação permanente do espaço mediático foi especialmente notória na semana que passou. Destinou-se decerto a tentar mitigar o enorme revés que representou a demissão do coordenador do Plano de Vacinação, Francisco Ramos, que, por razões de ordem vária, se afigurava inevitável. A única forma que o Governo encontrou de tentar tapar o sol com a peneira foi mesmo ir para as salas de vacinação, umas atrás das outras, rapidamente e em força. As falhas da comissão responsável pela coordenação e, em particular, daquele dignitário socialista, eram manifestas. Desde a recusa inicial em dar prioridade aos maiores de 80 anos até à inexistência de listas alternativas para as sobras, tudo parecia feito em cima do joelho. O que não pode espantar. Por um lado, porque o planeamento da vacinação em Portugal – tal como todos os restantes planeamentos (envolvimento do sector privado e social; encerramento de escolas e aulas à distância; funcionamento dos tribunais, etc.) – começou tarde e a más horas. Por outro, porque a personalidade escolhida para chefiar esta difícil missão mostrou não estar à altura do desafio.

4. Tudo se inicia no convite para ser presidente da comissão executiva de um hospital, já depois de ter assumido funções como coordenador nacional. Como pode aceitar-se (e passar sem reparo na nossa opinião pública) que alguém que assume um papel crucial destes queira e possa acumular essas funções com a administração quotidiana de um hospital? Afinal, para ele e para o Governo, a vacinação era mesmo a tarefa mais importante que Portugal tinha entre mãos? Se era, como aceitar uma não dedicação exclusiva à tarefa? Como?

Depois, a sua forma de comunicação errática e com imensos lapsos e correcções não era de molde a suscitar a autoridade e a confiança que uma missão deste calibre postula. Isto já para não falar do envolvimento na campanha eleitoral presidencial, partidarizando uma função que se devia por patriótica e absolutamente neutral. E, pior ainda, do comentário político acerca de cidadãos, ligando a questão das vacinas a escolhas eleitorais. Não havia outra saída, senão o seu afastamento. Diante de um tão grande revés, só a propaganda em massa e em força poderia distrair as atenções.

5. Louve-se a escolha do vice-almirante Gouveia e Melo, que contrasta radicalmente com a táctica governamental. Logo no dia em que foi escolhido, fez questão de sublinhar que trabalharia discretamente. Resta ver se o Governo, ruidoso como é, o permite.

Sim e Não

SIM. Governos Regionais. A forma como os governos da Madeira e dos Açores se prontificaram para ajudar no combate à terceira vaga é mais um exemplo positivo da onda de solidariedade nacional. 

NÃO. Josep Borrell. A viagem à Rússia do Alto Representante da UE foi um desastre diplomático a todos os níveis. Confirma o perfil inadequado para a função e uma indisfarçada visão ideológica da mesma.

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