A ideologia, por trás da vacinação

Isto, senhoras e senhores, é o capitalismo a funcionar. Dinheiros públicos a financiar e assumir todos os riscos dos laboratórios privados em vez de aumentarem os recursos das instituições públicas igualmente capazes de produzir vacinas. E, depois de haver vacina, o mercado livre e a especulação a tomar conta das operações. O paraíso do liberalismo!

Inicio este escrito declarando desde logo que nada sei sobre planos de vacinação, pelo que não conseguirei ombrear no luso-comentarismo de certezas absolutas sobre o que poderia/poderá ser feito de outra forma em Portugal. No entanto, consigo perceber a importância da vacina no combate à pandemia e, sobretudo, a absoluta necessidade que a vacinação se faça de uma forma rápida e eficaz. Também consigo entender a indignação generalizada em torno dos casos de chico-espertice e abuso de poder – que deveria suspender os gulosos de exercer funções de carácter público e originar o apuramento de responsabilidades criminais, ainda que me preocupe mais que se tenham desperdiçado 600 vacinas no Hospital de Penafiel.

Mas vamos aos factos. No dia em que escrevo, Portugal é 26.º país do mundo com mais vacinas administradas por 100 habitantes (20.º da Europa e 16.º da UE) – à frente de Alemanha e França, por exemplo. Pelo que se vai sabendo, a logística montada permitiria um processo de vacinação muito mais acelerado; o problema é haver muitas incertezas sobre a chegada das vacinas num processo que está a ser gerido, ideologicamente, pela Comissão Europeia.

A estratégia da UE foi a do costume. Estabeleceu parcerias público-privado (PPP) entre a Comissão Europeia e seis multinacionais farmacêuticas –​ BioNTech-Pfizer, Moderna, AstraZeneca, Johnson & Johnson, Sanofi-GSK e CureVac – com contratos opacos e em que o Estado assume o grosso das despesas e riscos. Apesar de se tratar de milhões de euros públicos, a maior parte do seu clausulado é secreto. Não se sabe quais os prazos e quantidades contratualizados, mas já se sabe que os dinheiros públicos financiaram a investigação e o desenvolvimento da vacina, anteciparam uma parte das receitas relativas às vendas e assumiram a maior parte dos riscos relativos a um eventual fracasso.

Apesar da opacidade dos procedimentos, parece claro que o verdadeiro problema da vacinação em Portugal e nos demais Estados-membros não é de carácter nacional. O declarado objectivo da Comissão Europeia de ter 70% da população adulta vacinada até ao fim do Verão parece difícil de concretizar, pois desconfia-se que algumas das multinacionais farmacêuticas estarão a desviar grande parte da sua produção para quem oferece mais dinheiro pela vacina, designadamente, Israel, EUA e Reino Unido. Numa atitude sem precedentes, a Comissão Europeia já veio admitir a possibilidade de não autorizar a saída de vacinas produzidas dentro da UE.

Isto, senhoras e senhores, é o capitalismo a funcionar. Dinheiros públicos a financiar e assumir todos os riscos dos laboratórios privados em vez de aumentarem os recursos das instituições públicas igualmente capazes de produzir vacinas. E, depois de haver vacina, o mercado livre e a especulação a tomar conta das operações. O paraíso do liberalismo!

Após uma campanha mediática de reiterada ridicularização da investigação científica na Rússia e na China em torno da vacina, há quatro dias Angela Merkel veio admitir “que todas as vacinas são bem vindas na União Europeia”. Fora do quadro da UE, sabe-se que a Alemanha está a negociar o apoio à produção da vacina russa a partir do Instituto Paul Ehrlich para, obviamente, encontrar uma linha alternativa de abastecimento de vacinas. Note-se que a Sputnik V está testada e apresenta muito melhores resultados que a maioria das desenvolvidas no quadro das PPP's da UE.

Olhando para este processo de vacinação global, há outra coisa que nos deve saltar à vista. Há países, os mais pobres, aos quais só está programado chegar uma vacina em 2023 e, mesmo nos países menos desenvolvidos ou em vias de desenvolvimento, os cidadãos indocumentados ficarão fora dos planos de vacinação. Ou seja, nos territórios de pobreza, o vírus continuará os contágios e a produzir mutações (a mutação do vírus só acontece após infecção). Não é improvável que alguma ou algumas dessas mutações possam, um dia, vir a ser resistentes a uma ou a todas as vacinas. Entender esta dinâmica remete-nos para uma ideia de interesse comum, global, que se deve impor perante o interesse particular individualizado. É tão importante que a vacina chegue a Portugal como ao Suriname, é tão importante que o cidadão que assina este artigo seja vacinado como o cidadão indocumentado com a mesma idade e nível de risco, porque todos são corpos onde o vírus se pode desenvolver e criar mutações.

Chegados aqui, é preciso afirmar que este sistema global falha redondamente a proteger os seres humanos privilegiando as leis do mercado e o interesse privado, à ciência, à saúde e, sobretudo, ao interesse colectivo e comum. Não, este não é o tempo das multinacionais farmacêuticas aumentarem os seus lucros – é o tempo de derrotar o vírus.

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