Turquia, (n)um estado excepcional

Os regimes opressores não dependem do apoio popular e, por isso, são sempre frágeis. A maneira mais eficaz de mitigar essa fragilidade é manter a sociedade em choque permanente, eliminando o conceito de previsibilidade na vida social.

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Na Turquia, como noutros países, o limite de velocidade tem uma tolerância de 10%. Isto é, a multa aplica-se só se um carro ultrapassar o limite em mais de 10%. Em Esmirna, há uma avenida costeira que liga duas partes da cidade. Há já décadas, reparou-se num detalhe: os velocímetros têm divisões de dez em dez quilómetros, o que causa um grande problema logístico. Quando o limite de velocidade é de 80 quilómetros por hora, os condutores conduzem sempre com a velocidade de 90 quilómetros por hora (mais que os 88 permitidos) e os radares apanham-nos. Quando o limite é de 90 quilómetros por hora, os carros vão a 100 quilómetros por hora, mais que os 99 permitidos 99. Depois, há discussões eternas entre os condutores e a polícia de trânsito.

Podia haver uma solução simples: explicar que os 10% de tolerância servem para casos excepcionais. Pelo contrário, decidiu-se criar um sinal de trânsito que diz que o limite de velocidade é de 82 quilómetros por hora. Assim, o limite cognitivo arredonda-se a 90 quilómetros por hora e deixa de haver problemas.

Adaptar as regras a uma sociedade de excepções funciona a vários níveis. Em Março de 2019, nas eleições autárquicas, votou-se, ao mesmo tempo, para as freguesias, para as assembleias municipais e para a presidência das câmaras municipais. Contudo, o AKP, partido de Erdogan, no Governo há quase 20 anos, perdeu a presidência de Istambul. O AKP contestou os resultados, alegando supostas irregularidades de contagem e votos falsos. Então, decretou-se a repetição das eleições… só em Istambul, e só na parte da presidência da câmara. Deve ter acontecido qualquer coisa muito excepcional para haver irregularidade só num terço do mesmo acto, mas as excepções são a regra na política turca. (Já agora, o AKP perdeu com uma diferença maior que a anterior.)

Há um mês, foi aberto (de novo) o debate público controverso dos reitores das universidades. Antes do AKP, o processo ditava que todos os professores de uma universidade podiam concorrer nas eleições e, depois, a universidade fazia eleições democráticas internas para definir três candidatos; o Presidente da República, então, aprovava o primeiro, menos em casos excepcionais, em que haveria problemas curriculares, nomeando, assim, um dos outros dois. Com Erdogan como Presidente, esta excepção tornou-se regra, tendo ele sistematicamente nomeado o candidato, de entre os três, que alinhasse com as políticas do Governo, independentemente do número de votos. Assim, as eleições universitárias deixaram de fazer sentido, na prática. Uns anos depois, acabou-se com isso por completo, deixando o Presidente escolher entre candidatos que nem sequer precisavam de ser professores na universidade de onde queriam ser reitores.

Há um mês, Erdogan nomeou um novo reitor para a Universidade de Bogazici, uma pessoa sem qualquer ligação à universidade e com plágio na sua tese de doutoramento. Os primeiros a revoltar-se foram os estudantes, que organizaram acções de protesto. Os professores seguiram-se, com concentrações, cartas abertas e declarações. Juntaram-se os ex-alunos e também os estudantes das outras universidades. Na semana passada, centenas de polícias entraram no campus para dispersar um acampamento de vigília, o que fez escalar a situação, levando manifestações na cidade com milhares de pessoas. Já se contam cem detenções em diversas cidades.

O problema crónico de Erdogan com uma das melhores universidades da Turquia tem a ver com as regras. Todo o ensino na Bogazici é feito em inglês, o que implica proficiência nesta língua e experiência no estrangeiro como requisitos para contratação em qualquer das suas faculdades. Um nível tão alto (!) de sofisticação intelectual não permitiu a entrada dos quadros do AKP para tomar o poder, mesmo passados 20 anos. Resultado: o reitor arranjado de fora não conseguiu encontrar uma única pessoa para ser vice-reitor na administração dele – isto numa universidade com 500 professores. A regra é que, apesar de o reitor ser nomeado pelo Presidente, a administração deve ser composta pelas pessoas da universidade.

Então, tornou-se necessário regularizar mais excepções. Depois de uma semana de protestos e de não-colaboração por parte da população inteira da universidade, Erdogan encontrou uma solução excepcionalmente esperta. Fundou, por decreto presidencial (apanhando toda a universidade de surpresa), mais duas faculdades na Bogazici: a Faculdade de Comunicações e a Faculdade de Direito.

O truque aqui é a falta de equivalência internacional no Direito. Isto é, o Direito não é uma disciplina internacionalmente estandardizada, o que faz com que os requisitos de língua e experiência, muito provavelmente, não se apliquem, o que faz com que qualquer pessoa que tenha estudado Direito, em qualquer universidade, poderá ser contratada na Bogazici. Esta excepção vai, como todas as outras, dominar a regra, e administração inteira da universidade será controlada por Erdogan.

Os regimes opressores não dependem do apoio popular e, por isso, são sempre frágeis. A maneira mais eficaz de mitigar essa fragilidade é manter a sociedade em choque permanente, eliminando o conceito de previsibilidade na vida social. (O terrorismo faz o mesmo.) Quando a cultura da sociedade assimila a excepcionalidade como regra, toda a sociedade fica paralisada, e as pessoas não conseguem conceber um futuro ou construir planos.

Numa trajectória de crises globais sucessivas, temos muito a aprender com as lutas democráticas na Turquia (e com os erros delas).

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