As chagas da epilepsia

Esta disfunção é, na maior parte das vezes, benigna na sua evolução, sendo apenas necessário controlar a doença farmacologicamente. E este é o problema essencial, o controlo, e a sua necessidade de ser quase perfeito. Nestes doentes, tudo correr bem 364 dias, 23 horas e 59 minutos num ano pode não ser suficiente.

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Pawel Czerwinski/Unsplash

Esta segunda-feira, 8 de Fevereiro, Dia Internacional da Epilepsia, relembramos os 50 milhões de doentes no mundo inteiro que padecem desta doença incompreendida. Relembramos aqueles que sofrem em silêncio, açambarcados pelo preconceito, de algo que a maioria não sabe o que é nem o que significa. A compreensão da doença invisível é sempre difícil, ainda para mais sem informação, mas é para isso que simbolicamente atribuímos dias a temas importantes, para nos podermos informar.

Mais do que uma doença no sentido clássico, podemos ver a epilepsia como uma disfunção. Simplesmente se o nosso pensamento pode ser atribuído a uma comunicação ordeira entre neurónios em determinada localização, por exemplo, a epilepsia pode ser vista como um disparo simultâneo desorganizado de uma área disfuncional. Assim é fácil perceber que a epilepsia não é apenas uma doença em si, mas pode ser também uma consequência de todas as outras doenças cerebrais que podem criar essa disfunção.

Sendo o conceito do que é relativamente simples, as consequências podem não o ser. A verdade é que esta disfunção é, na maior parte das vezes, benigna na sua evolução, sendo apenas necessário controlar a doença farmacologicamente. E este é o problema essencial, o controlo e a sua necessidade de ser quase perfeito. Nestes doentes, tudo correr bem 364 dias, 23 horas e 59 minutos num ano pode não ser suficiente. Na verdade, um doente com uma epilepsia aparentemente controlada, nestas condições, está limitado em actos tão básicos como conduzir até ao seu trabalho, de ter certos tipos de actividade profissional, ou, em situações extremas, até de cuidar dos seus filhos. Tudo porque ele nunca sabe o minuto em que tudo pode correr mal, aquele onde vai ocorrer a crise, e não é preciso que seja uma convulsão, a denominação vulgar do tipo de crise mais conhecida, basta ser uma perda transitória de consciência.

Assim a exigência é a máxima, mas quantos de vós poderão dizer que nunca se esqueceram de tomar a vossa medicação uma vez num ano? Ou quantos poderão dizer que dormiram o suficiente durante todos os dias de um ano (outro facilitador frequente de crises)? Não é difícil perceber que este diagnóstico muda uma vida e pode mesmo dominá-la se nós deixarmos. O que o médico neste momento vai tentar fazer é devolver o controlo da vida ao seu doente, mesmo que nem sempre seja possível.

Este controlo é devolvido a maior parte das vezes por via de fármacos antiepilépticos. Às vezes consegue-se imediatamente, outras vezes não, outras vezes ainda são os doentes que não toleram os medicamentos. Existe um equilíbrio que vai sendo atingido à medida que o tempo passa. E no meio de todo este cenário adverso, a verdade é que muitas vezes este objectivo de controlo máximo é conseguido. Mas isto é tudo o que os médicos podem fazer.

Nada no meio de toda esta estratégia muda o combate que o doente tem pela sua frente. A verdade é que muitas vezes o pior inimigo não é a doença, mas sim o estigma. O medo da exclusão e da desqualificação social leva muitas vezes ao secretismo e ao sofrimento em silêncio. Pode parecer impensável, mas muitas vezes quando olhamos para alguém que cai o nosso primeiro instinto é ir ajudar, no caso de ser alguém com uma crise convulsiva o primeiro instinto é ficar a observar de longe, com medo, sem saber o que fazer.

Se isto se aplica na que devia ser a mais básica cláusula do nosso contrato social, assistir aquele que necessita de ajuda mais imediata, não é preciso muito para imaginar as ramificações que pode ter. Não é por acaso que existe mais desemprego entre doentes com epilepsia. Este é o exemplo mais perceptível, mas tantas outras coisas imensuráveis devem ocorrer. O leitor poderá estar a pensar que nada pode ser feito, mas na verdade há. Sabemos que nada provoca o estigma como o desconhecido. Por isso temos de tentar ser mais e melhor por eles. O primeiro passo que temos de tomar para lhes facilitar a vida é ser mais informados, dar um pouco mais do nosso tempo para perceber melhor estas pessoas e esta doença, evitar o estigma. Acima de tudo permitir, pelo menos no que toca a nós, que estas pessoas tenham o que querem, uma vida normal.

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