Evitar o narcisismo de massa

Não nego os enormes benefícios gerados pelas tecnologias digitais, em todas as esferas da nossa vida, mas estão em causa os laços sociais, isto é, o cimento da sociedade.

Não se tocar. Não devemos tocar nos outros, fisicamente, para não os contaminar. Não podemos tocar os outros, interiormente, porque as caras estão parcialmente vedadas pelas máscaras e é a cara que dá acesso ao outro. Le visage de l’autre m’interpelle, escreveu Emmanuel Levinas; interpela o meu afeto, a minha responsabilidade. Mas não é só a luta contra a pandemia que coloca em perigo os laços vários que unem as pessoas e fazem sociedade. Também é a tecnologia e a forma acrítica com que é adotada. Sobretudo no mundo do trabalho.

O corpo e os laços

Não uso o termo narcisismo no seu sentido de patologia psicológica, mas na sua vertente de falta de empatia, difícil relacionamento com outrem e ausência de solidariedade. Para Levinas, o encontro com a cara de outrem é desde logo ético; é um convite à responsabilização pelo outro; é a janela que permite aproximar-nos do outro pelo interior. Alguns filósofos referem estarmos perante uma crise da sensibilidade; insensibilidade perante os outros, insensibilidade perante a destruição da natureza.

Os laços que nos unem aos outros e ao mundo natural passam pelo corpo, pela presença e encontro físicos. Dizer que uma aula ou uma reunião por Zoom é igual a uma aula ou reunião presencial é como dizer que ouvir um concerto ao vivo é igual a ouvir música gravada. É não sentir a diferença.

Quanto ao trabalho, é importante assinalar que os “trabalhadores essenciais”, assim denominados por serem considerados essenciais ao funcionamento da com-unidade em tempos de pandemia (DL n.º 10-A/2020), são precisamente os que continuam a encontrar fisicamente outras pessoas. Os que podem ficar confinados têm acesso à im-unidade. Note-se que a maioria dos trabalhadores essenciais recebe o salário mínimo e continuará a recebê-lo porque, não sendo o seu trabalho sujeito a digitalização, a sua “produtividade” permanecerá baixa.

Digitalização e fragmentação do mundo do trabalho

Este aumento da distância, física, social, entre os que trabalham com o corpo e os outros é uma característica da polarização do emprego, de que já aqui falei. Vários estudos mostram uma polarização entre as profissões cuja produtividade – e, portanto, cujo salário – aumenta com a digitalização, e as profissões que a digitalização não afeta, como os serviços sociais, cujo salário diminui em termos relativos. A polarização é uma das vertentes da fragmentação do mundo do trabalho, de que vou dar alguns exemplos.

As plataformas digitais, como Uber e Bolt, gerem os trabalhadores através de algoritmos, negando o seu estatuto de empregadores, o que lhes permite desresponsabilizarem-se dos seus deveres em matéria de segurança social, proteção no desemprego, cobertura dos acidentes de trabalho, cumprimento do salário mínimo. Há estafetas que morrem de exaustão na Coreia do Sul. Outro efeito perverso desses empregos é o facto de os clientes se transformarem em “supervisores”; ao avaliar o condutor da Uber/Bolt, o cliente avalia o cumprimento do horário, a simpatia e maneiras do condutor, como se ele fosse seu subordinado, e a nota dada determina a continuação ou erradicação do condutor da plataforma. Quantos de nós têm consciência disso? O condutor torna-se invisível enquanto trabalhador e enquanto pessoa; não nos deixamos tocar.

Os cidadãos em teletrabalho não se apercebem que sobrevivem graças aos “trabalhadores essenciais” – trabalhadores invisíveis. O que está, portanto, em causa é essa invisibilidade e a desresponsabilização pelo outro que lhe está associada, promovendo uma sociedade em que os favorecidos se instalam confortavelmente no isolamento social. As clivagens sociais acentuam-se, a sociedade fragmenta-se. As formas de divisão do trabalho que emergem com a digitalização intensificam a insensibilidade social.

Assistimos ao triunfo do capitalismo digital, em desfasamento total com a economia real. As GAFAM (Google, Apple, Facebook, Amazon, Microsoft) reforçaram a sua hegemonia com a pandemia. Enquanto milhares de lojas fechavam, os lucros da Amazon subiram 53% e as ações 65%; Jeff Bezos tornou-se o homem mais rico da história da humanidade. Contrariamente aos trabalhadores precários, muitos milionários enriquecem quando a economia cresce e enriquecem mais ainda quando a economia está em crise.

Soluções

Não nego os enormes benefícios gerados pelas tecnologias digitais, em todas as esferas da nossa vida, mas estão em causa os laços sociais, isto é, o cimento da sociedade. As decisões acerca do uso da tecnologia não podem ser deixadas aos mecanismos de mercado e aos poderes privados. Não nos podemos demitir de pensar o futuro e fazer escolhas quanto à sociedade que queremos. São necessárias medidas que instituam solidariedade e integrem os “invisíveis” na perceção do nosso destino comum. Soluções têm surgido que importa generalizar.

Sindicatos como IG Metal na Alemanha encontraram formas inovadoras de dar voz coletiva aos trabalhadores das plataformas. O estado da Califórnia decidiu, em 2020, obrigar a Uber a estabelecer contratos de trabalho com os condutores. Os poderes públicos podem regulamentar as empresas digitais através de legislação laboral protetora e de certificação (a Suécia vai certificar as empresas de estafetas). Podem também estimular a valorização dos salários dos trabalhadores “essenciais”, para que os rendimentos retratem a contribuição para a comunidade. A hierarquia salarial é uma questão política que traduz a escala de valores de uma sociedade. 

Outra solução reside na generalização da codeterminação como forma de governo das empresas, porque é na raiz, ou seja, nas empresas, que mais eficazmente se pode controlar a organização do trabalho e a distribuição do rendimento (por exemplo, os salários dos CEO). Na Amazon, os trabalhadores têm pedido para participar no design dos algoritmos que os gerem e controlam – a Amazon tem sistematicamente recusado.

Face ao risco de fragmentação social associado à digitalização, a responsabilização tem de ser de todos – cidadãos, sindicatos, empresas, poderes públicos. “Há poucas pessoas que sabem que os outros existem”, disse Simone Weil. Temos de evitar criar uma sociedade de indivíduos des-ligados, des-obrigados, virados para si próprios, uma sociedade onde vigora um narcisismo de massa. Tocar-se.

A autora escreve segundo o novo acordo ortográfico

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