Dilemas e o Programa de Vacinação

O constrangimento grave na disponibilização das vacinas é uma questão política, económica e estratégica. Procurar alternativas possíveis para o seu fornecimento fora do contexto da negociação centralizada poderá ser uma necessidade.

O Programa de Vacinação é, pela sua dimensão e impacto global na Saúde dos portugueses, na recuperação económica e pela necessidade de equidade, isenção e coerência, um desafio sem precedentes nas últimas décadas. Para todos nós, com disciplina, moderação e resiliência perante a adversidade, e para o Estado, para a capacidade de organização e mobilização dos recursos e competências indispensáveis, para além da partidocracia e compadrio habituais. Por isso, saúdo a decisão de escolher um oficial General das Forças Armadas com currículo inquestionável e formulo votos de sucesso neste empreendimento verdadeiramente nacional.

Dificuldades, internas e externas, controvérsias e desvios à rota traçada sempre indesejáveis, serão porventura inevitáveis, pelo que importará relembrar objectivos e critérios norteadores da acção para que não se perca rumo, mesmo com ventos desfavoráveis.

  1. Objectivos são claramente dois: preservar a Vida e controlar da disseminação da pandemia.

O primeiro corresponde a visão humanista, é pressuposto fundamental e valor irrecusável nas nossas sociedades democráticas e livres, no Ocidente e no Oriente, é marca de civilização. O segundo, face ao vírus SARS-CoV-2, significará obter imunidade para cerca de 60 a 70% da população adulta, o que só será possível com vacinação das populações.

Vacinação maciça e rápida quanto possível foi a estratégia assumida universalmente. Constrangimentos na produção e distribuição, dificuldades na concretização, contribuirão para diferenças de ritmo dos programas de vacinação na Europa e no mundo e poderão agravar desigualdades.

  1. Critérios para Vacinação 

Foi globalmente reconhecido que a vacinação deveria iniciar-se pelo grupo etário superior aos 80 anos, institucionalizados ou não, e pelos profissionais de Saúde. A fundamentação científica é inquestionável: maior risco de mortalidade pela idade, dependências e menor autonomia, maior incidência de outras doenças – comorbilidades – como diabetes, doenças do coração, das artérias, respiratórias, insuficiência renal, doenças malignas e neurológicas. Adicionalmente, redução do risco de disseminação potenciada pela interacção com cuidadores e familiares. Por outro lado, a necessidade de assegurar o funcionamento dos serviços de Saúde impunha que médicos, enfermeiros, técnicos, assistentes operacionais e outros que, pela sua diferenciação, fossem indispensáveis ao funcionamento das instituições de Saúde, deveriam incluir esse grupo inicial. E não apenas os envolvidos no tratamento dos doentes covid-19, minimizando consequências de paragem e redução do tratamento de outras patologias igualmente prioritárias. A hesitação sobre vacinação das principais figuras do Estado, incluindo Forças Armadas e outros, indispensáveis à Segurança do País, foi incompreensível, suscitou perplexidade e permitiu incoerência e arbítrio. Assim como a saga sobre os profissionais de Saúde externos ao SNS, menorizados de forma inaceitável, foram a expressão da visão sectária prevalente na política de Saúde.

A definição do patamar seguinte – cidadãos maiores de 50 anos com comorbilidades, isto é, doenças associadas que foram discriminadas, suscitou controvérsia que emergiu agora na comunicação social. Na essência, uma questão relevante: vacinar segundo hierarquização mais rigorosa de risco clínico potencial ou aceitar aleatoriedade no processo. Será esse desideratum compatível com a necessidade de uma vacinação tão abrangente e rápida quanto possível? Traduz conflito entre os dois modelos de intervenção sanitária, a Medicina individualizada centrada no doente e a intervenção populacional de Saúde Pública, em plena pandemia. A primeira pressupõe conhecimento global da pessoa doente, familiares, ambiente, o passado e o presente na procura da melhor decisão individualizada, e tão precisa quanto possível, para o problema clínico daquele doente. A Medicina do Indivíduo! Mas como assegurar com rigor e equidade tal objectivo para todos os clínicos no sector público, social e privado, num país onde ainda não temos sistema informático perfeito, homogéneo e compatível para o registo e partilha de informação clínica? Como garantir selecção justa, equitativa e em tempo oportuno?

A intervenção necessária, na perspectiva de uma dimensão populacional e de Saúde Pública, pressupõe outra visão – Medicina da População. Impõe maior linearidade na hierarquização, com o menor compromisso da equidade e justiça. Daí, o critério da idade, escalonada por década, com dois subgrupos adicionais: com e sem as doenças associadas identificadas. Tem limitações? Talvez, mas parece-me que será o mais equitativo, justo, prático e exequível e uniformemente aplicável em todo o País! Deverá ter ainda em consideração o número relativamente escasso de portadores mais jovens de dependências graves e doenças raras incapacitantes, que felizmente serão número limitado.

Haverá sempre loopholes – os buracos no queijo de alguns autores por onde passarão falhas na selecção dos cidadãos, arbitrariedade, oportunismo, truques, obviamente inaceitáveis. A única forma de os minimizar é disciplina, determinação e monitorização efectiva da intervenção. Isto é, liderança.

Dispensará certamente a permanente obsessão mediática dos responsáveis políticos, de quem talvez se devesse esperar maior contenção, sobriedade e distanciamento.

  1. Metodologia

Defendi em artigo recente que o esforço de vacinação maciça deveria ser, ​sempre que possível, dissociado do sector da Medicina Clínica consultórios, hospitais, centros de saúde para não comprometer outras tarefas essenciais e inadiáveis para a saúde da população. O recurso a edifícios adaptáveis facilmente, a mobilização de médicos e enfermeiros aposentados e voluntários, e de estudantes de Medicina e Enfermagem para, adequadamente preparados e vacinados, fazerem a orientação e avaliação dos doentes, antes e depois da inoculação, seria útil. Assim como o recurso à rede das farmácias, próximas da comunidade, adequadamente integradas no processo e capacitadas para a tarefa. E todo este programa devidamente padronizado, com registo computorizado para ser facilmente quantificável e accountable, decorreria com supervisão local da autoridade de Saúde Pública e a liderança firme de comando único e efectivo.

O cumprimento das metas do processo de vacinação pode ser comparado nos diversos países, como se representa no quadro I, que inclui União Europeia e Reino Unido. 

Quadro I: Comparação do ritmo de vacinação em diferentes países          

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No contexto europeu ocuparemos a décima posição; não tão mal como as hesitações e abusos que mancham a credibilidade destes processos pareciam sugerir. Fora da Europa, a estratégia seguida em Israel – que já terá vacinado mais de 1/3 da população, mas só agora foi noticiado o começo da vacinação nos territórios palestinianos – e nos Estados Unidos, sob a liderança do novo Presidente, apostado em reverter as consequências duma política errática seguida pelo seu antecessor, serão certamente objecto de avaliação detalhada. Nos últimos dias, a OMS tornou público apelo à aceleração da vacinação na Europa.

O constrangimento grave na disponibilização das vacinas é uma questão política, económica e estratégica. Procurar alternativas possíveis para o seu fornecimento fora do contexto da negociação centralizada poderá ser uma necessidade e terá certamente strings attached. Como país periférico e de menor dimensão, no exercício da Presidência rotativa da União Europeia, Portugal deveria desenvolver uma actuação proactiva e visível na resolução deste problema e na necessidade de assegurar equidade entre os diferentes Estados.

O mundo não é perfeito, as desigualdades infelizmente persistem nas nossas sociedades e o efectivo controle da pandemia requer acção global, planetária. Que a cooperação científica e tecnológica internacional que possibilitou o desenvolvimento sem precedentes destas vacinas seja inspiração para plano de acção coerente e global, a herança final de uma pandemia que parou e interpelou o planeta e o nosso modo de viver.

Post Scriptum: A cooperação do sector privado será cerca de 300 camas para doentes do SNS e em artigo de jornal, não desmentido, foi noticiado que o custo da aquisição de vacinas terá sido comparticipado em 85% por um consórcio de empresas, fundações e grupos de Saúde, do sector privado. Uma lição, perante tanta indiferença e hostilidade. E uma interrogação: a cooperação alemã ficará limitada à instituição escolhida ou não seria também útil alargá-la nas instituições com maior sobrecarga covid no SNS?

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