Manifestações gigantescas na Birmânia, uma semana depois do golpe militar

Centenas de milhares de pessoas saem à rua em Rangum, com os protestos a espalharem-se pelo país. Líder militar repete acusações de fraude e começam os avisos de uma resposta aos manifestantes.

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Manifestantes no centro de Rangum, maior cidade e capital económica da Birmânia LYNN BO BO/EPA
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Polícia dispara canhões de água contra os manifestantes na capital, Naypyidaw Reuters

Os maiores protestos contra o golpe militar na Birmânia acabaram sem derramamento de sangue, mas no primeiro dia em que foram usados canhões de água contra os manifestantes, os generais começam a avisar que não vão continuar a tolerar a contestação. Na sua primeira intervenção televisiva, o novo líder do país, general Min Aung Hlaing, repetiu as acusações de fraude eleitoral e afirmou que a junta vai realizar novas eleições.

Desta vez, garante o general, a junta vai formar “uma democracia verdadeira e disciplinada”, diferente da anterior governação militar, cita a agência Reuters. “Teremos uma eleição multipartidária e entregaremos o poder a quem vencer, de acordo com as regras da democracia”, afirmou. Sem se dirigir aos manifestantes, disse ainda que os cidadãos devem “seguir os factos verdadeiros e não sentimentos próprios”.

Foi Min Aung Hlaing, até agora chefe do Estado-Maior General, que interrompeu o frágil processo de democratização em curso a 1 de Fevereiro, quando tomou o poder, alegando fraude generalizada nas eleições de Novembro, que a Liga Nacional para a Democracia (NLD), de Aung San Suu Syi, venceu com maioria absoluta.

"Malfeitores ilegais"

Nem o general nem outros oficiais ameaçaram directamente os manifestantes, mas depois do silêncio do fim-de-semana, um canal estatal anunciou que o “povo” quer ver-se livre dos “malfeitores”: “Nós, o povo que valoriza a justiça, a liberdade e a igualdade, a paz e a segurança, não só recusamos aceitar os malfeitores ilegais como pedimos que sejam impedidos e removidos através de cooperação”, afirmou a televisão MRTV num comentário. Sem ser atribuída a qualquer autoridade, a declaração foi depois lida num canal dos militares.

Antes, na capital, Naypyiyaw, os manifestantes que se aproximaram das três linhas de polícias anti-motim que cortavam uma estrada puderam ler o sinal ali colocado a avisar que poderiam ser disparadas munições reais se a terceira linha de agentes fosse ultrapassada.

Os protestos começaram a medo mas têm crescido desde o golpe de há uma semana – de alguns manifestantes na quinta-feira passaram a centenas na sexta, com estudantes e professores a aderir à campanha de desobediência civil e a afirmar o seu apoio ao Governo deposto pelos militares. No fim-de-semana, dezenas de milhares de pessoas marcharam nas principais cidades. Até que esta segunda-feira houve manifestações em dezenas de cidades e vilas, grandes e pequenas, e só em Rangum, capital económica do país, centenas de milhares de pessoas saíram à rua.

A campanha de desobediência civil começara com médicos a declarar que não trabalhariam para os generais. Nos protestos do fim-de-semana, em Rangum, Mandalay e na capital, Naypydaw, começaram a juntar-se outros funcionários públicos, advogados, estudantes e cada vez mais monges, com a semana a começar com as enfermeiras a responderem ao apelo para uma greve geral.

"Não temos medo"

“Nós, agentes de saúde, dirigimos esta campanha para exortar todo o pessoal do governo a juntar-se [ao movimento de desobediência civil]”, afirmou à Reuters Aye Misan, enfermeira num hospital governamental da maior cidade birmanesa. “A nossa mensagem a todos é que devemos abolir este regime militar e lutar pelo nosso destino.”

“Libertem os nossos dirigentes”, “respeitem os nossos votos”, “rejeitem o golpe de Estado”, lê-se em faixas e cartazes de cortejos encabeçados por monges. “Antes vivíamos no medo, mas tivemos um governo democrático durante cinco anos. Já não temos medo. Não nos vamos ficar”, disse à AFP Kyan Zin Tun, um engenheiro de 29 anos que se manifestava em Rangum.

E enquanto as forças de segurança usaram pela primeira vez canhões de água para tentar dispersar as multidões na capital, Naypydaw, a contestação saiu à rua em muitas outras cidades, com milhares de pessoas a desfilarem na cidade costeira de Dawei, no Sudeste, ou Myitkyna, capital do estado de Kachim, no extremo Norte da Birmânia. Em Tangu, a 300 km de Rangum, chegam vídeos onde se vêem centenas de pessoas a protestar com as buzinas das suas motas, o mesmo som que chega de Gwa, no estado de Rakhine.

A página da revista Frontier Myanmar no Twitter mostra imagens de protestos em locais tão distintos como os subúrbios industriais de Hlaing Tharyar, a partir de onde a população marchou para se juntar às grandes manifestações no centro de Rangum, até às 5000 pessoas que se juntaram numa concentração em Mindar, estado de Chin, onde se concentra a etnia chin, cristã protestante, em “mais um sinal de que a resistência está a ultrapassar as divisões étnicas da Birmânia”.

Longe da repressão com que responderam a outros movimentos de protesto, incluindo 1998 e 2007, os militares começaram a impor algumas restrições depois de terminados os protestos de segunda-feira. Há cidades e regiões onde foram proibidos os ajuntamentos de mais de cinco pessoas e em partes de Mandalay, assim como noutras cidades mais pequenas, foi imposto um recolher obrigatório entre as 20h e as 4h.

Revisão constitucional

A actual vaga de contestação só pode ser comparada com o levantamento popular dos monges em 2007, violentamente reprimido pelo Exército. Um ano depois os generais organizaram um referendo a uma nova Constituição, que garantia que mantinham um poder considerável mas abria a porta um Governo civil.

Seguiu-se a chegada de Suu Kyi e da NLD. Com a alta participação nas eleições de Novembro, onde os observadores internacionais não constaram problemas importantes, o partido admitia promover uma nova revisão constitucional – o texto em vigor reserve aos militares um quarto dos lugares no Parlamento e o controlo de três ministérios, Defesa, Interior e Fronteiras.

Suu Syi está detida e o seu advogado diz que não consegue falar com ela. Prémio Nobel da Paz em 1991, Suu Kyi passou quase 15 anos em detenção domiciliária durante décadas de luta contra a junta militar. Para já, os militares acusam-na de importar ilegalmente seis wakie-talkies.

O Conselho de Segurança das Nações Unidas pediu a sua libertação logo depois do golpe, enquanto o relator especial da ONU para o país, Thomas Andrews, escreve no Twitter que “os manifestantes na Birmânia continuam a inspirar o mundo à medida que as suas acções se espalham” pelo país. “A Birmânia “está a erguer-se para libertar todos os que foram detidos e rejeitar a ditadura militar de uma vez por todas. Estamos convosco.”

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