Humanidade de grupo

É também pensando no colectivo que pergunto: Quando é que começam a tirar do meu ordenado? E de todos os outros que estão economicamente intocados com esta crise? E talvez pudessem até tirar mais um bocadinho dos que estão a ganhar fortunas com esta desgraça.

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Daniel Rocha

Há demasiados acontecimentos que são notícia e motivo de grande debate, mas que em nada ajudam a que possamos transformar este desafio num mal menor. É muito triste e grave que se veja desonestidade e injustiças nas tomas das vacinas, e pese embora ser moralmente criminoso, em termos de ordem de grandeza nada representa. E esta gula egoísta pela vacina até vem ofuscar os irresponsáveis antivacinas, fazendo ver que se há gente a querer passar à frente é porque é mesmo, a solução.

Pela mesma ordem de ideias é desproporcional a atenção às diferentes ajudas que vêm de além-fronteiras. Eu, como qualquer médico, tratarei qualquer nacionalidade da mesma forma, e aceitarei ajuda vinda de onde vier. No entanto, à proporção do desafio isto parece mais relevante para a “fotografia” do que para a compreensão do problema e solução do mesmo. Isto para mim é relevante, porque os holofotes em algo tão irrelevante, mandam o relevante para segundo plano, e logo a compreensão colectiva é menor.

A vacina é a solução. Mas até chegarmos à vacinação de uma fatia considerável temos que concentrar todos os esforços e todas as atenções no que depende de cada um de nós, para que as perdas em vidas sejam menores, e para que o confinamento seja mais eficaz e consequentemente mais curto e menos agressivo para a economia.

Ao dia de hoje, e durante umas largas semanas, o que depende de nós é diminuir a cadeia de contactos. Eu sei que esta lengalenga é uma chatice, e que a matéria já foi dada nas aulas, mas a aprendizagem e absorção do conteúdo ainda é diminuto. Temos de perceber e fazer perceber o que é que depende de cada um de nós para salvar vidas, salvar a economia e reconquistar mais alegrias. Enquanto não chega a imunidade de grupo, temos que apostar tudo na humanidade de grupo. Um a um. Todos contam. Reduzir a zeros os contactos que temos com outras pessoas sem máscara está ao alcance de todos e tem maior poder de salvação do que a própria medicina. É triste? É, concordo. Mas ver gente a morrer e outros a perder o emprego é bem pior.

Eu acredito mesmo que se compreendermos bem o nosso papel na sociedade, o resto acontece com naturalidade. E é também pensando no colectivo que pergunto: Quando é que começam a tirar do meu ordenado? E de todos os outros que estão economicamente intocados com esta crise? E talvez pudessem até tirar mais um bocadinho dos que estão a ganhar fortunas com esta desgraça.

Todas as pessoas que estão impedidas de trabalhar para que os hospitais não rebentem, e para que se salve vidas, deveriam estar a receber uma percentagem do meu ordenado. É assim tão difícil pensar no colectivo? Temos de pensar no tecido humano como uma matéria contínua que se toca e interage, e só está saudável se a matriz estiver sólida, justa, coesa e em simbiose. A revolta não vem da pobreza, vem da injustiça e da desigualdade.

Os casos estão a baixar, e isso é excelente, mas são os internamentos que condicionam a capacidade de funcionamento dos hospitais, e estes infelizmente vão demorar muito a baixar até níveis razoáveis, e enquanto não temos anticorpos numa percentagem que permita abrandar o vírus, temos que nos unir mais do que nunca, o que significa que temos que nos afastar mais do que nunca e com máscara, e reforçando o tónus no equilíbrio da economia para o lado dos que salvam vidas ao deixar de trabalhar.

Até que chegue a imunidade temos que apostar tudo na humanidade que nos une.

Um a um. Todos contam. Não percam o foco.

Humanidade de grupo.

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