As mulheres são as piores

Concluir que as mulheres são as que mais prejudicam as mulheres levanta dois grandes problemas que, esses sim, as prejudicam. Parece argumentação circular, mas o círculo que não conseguimos quebrar é o do sistema patriarcal.

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Amanda Vick/Unsplash

Ao longo da campanha para as eleições presidenciais, entre betos e batom, muito se disse sobre as mulheres e as críticas que lhes foram dirigidas, muitas vezes por outras mulheres. Quantas vezes não ouvimos dizer que as mulheres são as piores nestas coisas? É verdade que há mulheres que criticam outras mulheres mais do que o fazem em relação aos homens? Sim.

Mas se problematizarmos esta questão chegamos à conclusão que dela não podemos senão retirar evidência anedótica. Há mulheres que criticam outras mulheres de forma mais severa. Ponto final. Se essas mulheres representam a maioria? Não sabemos. Se essas, ou outras, mulheres criticam mais do que os homens? Não sabemos.

Por isso, concluir que as mulheres são as que mais prejudicam as mulheres levanta dois grandes problemas que, esses sim, as prejudicam. Parece argumentação circular, mas o círculo que não conseguimos quebrar é o do sistema patriarcal.

O patriarcado pode ser definido como o sistema socioeconómico baseado no poder e privilégio de género — e em certa medida, raça e classe social. Este sistema cria dinâmicas de poder que favorecem um determinado grupo nas intersecções de género, raça e classe. Qualquer relação em sociedade tem em si um jogo de forças que pode ser qualquer combinação desses três aspectos. Se, ainda que artificialmente e para efeitos da problematização aqui em causa, destacarmos apenas a questão de género, os homens estão no grupo favorecido, no grupo que tem maior agência e que por isso mais decide e determina.

Com este contexto, voltemos aos dois problemas que derivam da questão inicial. Primeiro, dizer que as mulheres são as que mais julgam outras mulheres desvia o foco daquela que é a base do problema – o patriarcado –, passando o peso e a responsabilidade de resolver a situação para os ombros das mulheres. O que, por sua vez, mais não faz do que manter o patriarcado. Cá estamos de novo dentro do círculo.

O segundo problema é que se abre a porta à ideia de que para se ser feminista (entenda-se, a favor da igualdade de género) é necessário apoiar todas as mulheres, contra tudo e em qualquer situação. Também aqui esta lógica de trincheira contribui para a manutenção da relação de poder desigual existente entre géneros.

Com isto não pretendo negar a experiência daquelas mulheres que se sentem ou sentiram mais atacadas por parte de outras mulheres, nas suas escolhas pessoais ou no seu percurso profissional. Mas há uma reflexão que é preciso fazer antes de concluir “as mulheres são as piores”. Porque estes ataques são muitas vezes um mero sintoma da desigualdade.

Se, por exemplo, na direcção de uma organização há apenas um em dez lugares que será ocupado por uma mulher, serão mais as mulheres preteridas do que os homens. Perante esta competição desigual, a solidariedade que se exige entre as mulheres é mais forte do que aquela exigida entre os homens.

O mesmo exemplo serve para problematizar as vozes que se ouvem quando uma mulher chega a um lugar de topo: “subiu na horizontal”, “é mulher-homem”, “é agressiva e mandona”. Mesmo quando estas palavras são proferidas por mulheres, o que está por trás são ideias sistémicas, institucionais, de papéis de género. São esses papéis, pelo menos quando vistos de uma forma estanque e binária, que alimentam a hierarquia do sistema patriarcal; e é sobre eles que deve assentar a crítica.

Os sistemas produzem as nossas identidades e as hierarquias subjacentes mantêm as desigualdades. O resto é ruído.

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