“Milagre” português na covid-19: os que estavam em maior risco de doença grave foram os que mais tiveram essa percepção

Esta sobreposição entre o risco real e percepção de risco terá levado a que as pessoas que poderiam desenvolver doença mais grave e serem internadas se protegessem mais, conclui um estudo da Escola Nacional de Saúde Pública

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Foto tirada em Março do ano passado, quando o Governo decretou o primeiro estado de emergência paulo pimenta

As pessoas que estavam em maior risco de desenvolver doença grave ou de morte por covid-19 foram as que tiveram maior percepção desse risco, o que terá levado a que se protegessem mais, conclui um estudo da Escola Nacional de Saúde Pública (ENSP). Para o investigador principal, esta é também uma das principais justificações para o sucesso que país teve no combate à primeira vaga da pandemia e que o levou a ser apelidado de milagre português.

A equipa de investigadores cruzou duas bases de dados: informação do Sistema Nacional de Vigilância Epidemiológica (SINAVE) com os primeiros 20.293 casos confirmados de covid, cedida pela Direcção-Geral da Saúde em Abril, e informação do Barómetro Covid-19: Opinião Social, criado pela ENSP, recolhida entre 21 de Março e 23 de Maio (um total de 171.087 respondentes) sobre percepções e comportamentos e estado de saúde.

Avaliados os dados, os especialistas concluíram que as doenças respiratórias, cardiovasculares e renal eram as mais associadas ao internamento em unidades de cuidados intensivos e óbitos, assim como a idade avançada. Resultados que já tinham dado origem a um outro estudo da ENSP. A par, concluíram que 23,9% dos participantes do Barómetro Covid-19: Opinião Social consideravam ter um risco elevado de desenvolver complicações em caso de infecção pelo SARS-CoV-2, percentagem que subiu para os 46,4% nas pessoas mais velhas, 51,6% naqueles que sofriam de uma doença crónica e 67,7% entre os que eram mais velhos e tinham uma doença crónica.

Entre todos os subgrupos, refere o artigo recentemente publicado na revista internacional JMIR Public Health and Surveillance, as pessoas mais velhas com doença respiratória foram as que apresentaram maior percepção de risco (78,5%) – ou seja, a noção de que se infectados poderiam desenvolver uma situação grave de covid-19 -, seguidas das que tinham doença cardiovascular (69,6%) e das que tinham cancro (69%) sempre dentro do mesmo grupo etário (idade igual ou superior a 65 anos).

“Existiam vários cenários possíveis. Podia haver uma total desconexão da população com a realidade e as pessoas terem uma percepção muito baixa ou inexistente do risco ou podia o risco real não ter qualquer efeito percepção de risco. O que verificámos, é que não só tínhamos um nível relativamente elevado de percepção de risco como um todo, como essa percepção de risco ajustou-se ao risco real”, explica ao PÚBLICO Pedro Laires, primeiro autor do artigo e docente na ENSP.

O epidemiologista refere que isto “significa que uma pessoa que tenha um risco real aumentado - ser mais velha, ter outras doenças ou seu conjunto - tem também uma maior probabilidade de ela própria perceber que está em alto risco”. O que “é bom, porque está comprovado na literatura que essa percepção de ter risco elevado é condição sine quo non para um comportamento mais preventivo”. Ou seja, tende a cumprir mais com o isolamento ou distanciamento social, hábitos de higiene das mãos, uso de máscara.

Importância da comunicação

“Para mim, o grande contributo deste artigo é no sentido de mostrar que foi muito apropriada a percepção que as pessoas tinham face ao risco que efectivamente tinham e que isso pode ter contribuído para o sucesso da nossa resposta colectiva à primeira vaga”, afirma Pedro Laires, salientando que este resultado “mostra bem a importância da comunicação e que esta deve ser ajustada ao risco de cada um”.

Esse é um tema que os investigadores lançam na discussão do artigo, de que “é importante identificar os subgrupos aos quais deve ser direccionada mais informação para ter as pessoas com um comportamento mais preventivo”. Mas é preciso também que essa informação, além de “costumizada”, seja também equilibrada para que “seja eficaz e ajustada ao risco para permitir que as pessoas se protejam mas que não comprometa a procura de cuidados para o seguimento das doenças que já têm”.

Questionado sobre o que poderá ter mudado nas vagas seguintes, tendo em conta o aumento de casos positivos que colocou Portugal como o pior na Europa, Pedro Laires diz que é preciso investigar em detalhe. “Muita coisa aconteceu aqui e pode ter sido ao nível da governação, nos níveis intermédios ou em todos nós, nos nossos comportamentos e no que que acreditamos que temos de fazer em cada momento. Se se deve a uma mudança da percepção de risco ou se nos habituamos a viver com esse risco e passamos a ignorá-lo.”

Se isso aconteceu, refere, é preciso perceber “como contornar essa dessensibilização, porque é importante que as pessoas continuem a ter receio e a ter os comportamentos adequados”. “Lidar com a pandemia é um dos problemas colectivos que precisa da resposta de cada um”, afirma o epidemiologista.

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