O poder da China num mundo pós-americano

Os EUA têm um novo presidente, Joe Biden, mas ainda não são claros os contornos da actual estratégia para a China, nem qual será o seu grau de eficácia desta face aos objectivos americanos de preservar o seu poder e influência globais.

1. Os sinais de que estamos a entrar num mundo pós-americano são cada vez mais evidentes. Existem no plano político, económico, militar e tecnológico. São observáveis quer no hard power, que é um poder de coerção assente sobretudo na força militar, mas engloba outros instrumentos políticos e económicos como a capacidade aplicar sanções de forma eficaz; quer no soft power, que é essencialmente um poder de atracção e de sedução com múltiplas facetas, que vão desde o comércio à cultura, passando pelo modelo político e institucional. É ainda necessário clarificar que a expressão mundo pós-americano é aqui usada de forma neutra, para caracterizar um mundo onde os EUA estão a perder terreno como potência global sem rival à altura. Todavia, não significa que deixaram de ser a maior potência militar e/ou económica, ou que uma outra grande potência, o caso mais óbvio é o da China, os irá substituir automaticamente na hegemonia global, ocupando a posição por estes detida desde a II Guerra Mundial. Embora essa seja uma possibilidade em aberto, só nos próximos anos — ou talvez mais provavelmente décadas —, existirá uma percepção clara sobre o resultado da enorme transformação de poder em curso e sobre a forma como o mundo se irá reconfigurar. Para já, importa olhar para os acontecimentos que podemos observar e analisar as suas implicações.

2. Neste início de 2021 os EUA têm um novo presidente, Joe Biden, mas ainda não são claros os contornos da actual estratégia para a China, nem qual será o seu grau de eficácia desta face aos objectivos americanos de preservar o seu poder e influência globais. Em qualquer caso, a China e a vasta região da Ásia-Pacífico, ou Indo-Pacífico, serão certamente um problema maior para os EUA como potência global. No escasso tempo que o novo governo americano está em funções já ocorrem dois acontecimentos geopolíticos importantes nessa área: as demonstrações de força da China ao largo da ilha Formoso (Taiwan) e um golpe de Estado na Birmânia (Myanmar). No primeiro caso, trata-se de um problema tão antigo quanto a formação da actual República Popular da China em 1949. Na sua origem está a derrota militar e fuga para essa ilha dos partidários de Chiang Kai-shek e do Kuomintang (ou Partido Nacionalista Chinês) após a longa marcha de Mao Tsé-Tung (ou Mao Zedong) até à conquista do poder. As várias crises de Taiwan forem sempre grandes momentos de grande tensão internacional, especialmente as duas crises ocorridas durante os anos 1950 no contexto da Guerra-Fria. Num outro plano, está a questão da Birmânia, um Estado com o qual a China tem uma vasta fronteira terrestre com extensão superior a dois mil quilómetros. Para a China, é um Estado vizinho de grande valor estratégico. Não só integra a sua área geopolítica e o seu perímetro de segurança como, em termos económicos e comerciais, permite um acesso terrestre (muito mais curto) ao Índico, que evita a necessidade de usar a rota marítima (muito mais longa) que passa pelos estreitos de Singapura e de Malaca, entre a Malásia e a Indonésia, ao largo da ilha de Sumatra.

3. A Birmânia é hoje um país claramente sob influência chinesa. Nem sempre foi assim. Até um passado recente a sua mais carismática e conhecida personalidade internacional, Aung Suu Kyi, era muito apreciada no Ocidente que via aí uma projecção dos seus valores. Aung Suu Kyi foi Prémio Nobel da Paz em 1991 sendo vista como um símbolo da luta pela liberdade e democracia (e direitos humanos). Nas eleições de 2015, a grande vitória eleitoral do seu partido, a Liga Nacional pela Democracia, foi percebida como o princípio do fim do autoritarismo da junta militar que até aí detinha o poder. A perspectiva era a de uma crescente abertura da Birmânia ao mundo exterior, sendo os EUA e o mundo ocidental democrático parceiros expectáveis de relevo nessa transformação. Mas não foi esse o rumo dos acontecimentos. Sobretudo o conflito com os Rohingya — um grupo étnico minoritário indo-ariano e predominantemente muçulmano num país largamente budista — levou a um novo isolamento internacional e a uma censura moral e política do Ocidente. Ao contrário, do Ocidente, a China (e também a Índia), não só mostrou(ram) compreensão com a política do governo da Birmânia, como recusou(ram) uma condenação internacional. A posição política chinesa — repetida após o golpe de Estado de 1 de Fevereiro de 2021 que afastou Aung Suu Kyi e o seu partido do poder — é a de que se trata de assuntos internos da Birmânia. Não há, por isso, direito do mundo exterior intervir neles, violando a sua soberania. Esta é uma posição chinesa bem conhecida na política internacional. Todavia, neste caso, também foi motivada pelo problema que a China tem com a minoria uigur do Xinjiang e as múltiplas denúncias de maus tratos e tratamento opressivo. No caso da Birmânia, seja por falta de alternativas ou por frio pragmatismo calculista, o que acabou por acontecer foi que o governo partido de Aung Suu Ky aumentou largamente a sua ligação económica à China o que, por sua vez, deu aos chineses uma alavanca política sobre a Birmânia. Como já notado, a China amplificou a sua esfera de influência para o Índico, com ganhos estratégicos quer face à vizinha e rival Índia, quer face aos EUA / Ocidente. Com a crescente influência chinesa na economia da Birmânia e uma economia internacional cada vez mais moldada pela China, a condenação do golpe de Estado que levou à detenção de Aung Suu Kyi e as eventuais sanções económicas dos EUA / Ocidente à junta militar tornam-se largamente ineficazes.

4. No actual contexto político internacional, há um outro caso que evidencia bem como estamos a entrar num mundo pós-americano, ou, talvez mais exactamente, pós-ocidental. A vacina da chinesa da Sinopharm (Grupo Farmacêutico Nacional da China) e também a vacina Sputnik V russa, desenvolvida pelo Centro Nacional de Investigação de Epidemiologia e Microbiologia Gamaleya de Moscovo, mostram uma intensa competição com as tradicionais multinacionais da indústria farmacêutica do Ocidente, como a AstraZeneca, a Johnson & Johnson, a BioNTech-Pfizer e a Moderna. A vacina russa Sputnik V terá uma eficácia de quase 92%, segundo os ensaios clínicos publicados em 2 de Fevereiro de 2021 na prestigiada revista científica britânica da área da medicina, The Lancet. Quanto à vacina chinesa da Sinopharm, as autoridades médicas dos Emirados Árabes Unidos e do Bahrein aprovaram o seu uso em finais de 2020, tendo sido indicada um eficácia na ordem dos 86% (embora nesse caso os ensaios clínicos não tenham sido divulgados). É necessário notar que, independentemente da qualidade da vacina da Sinopharm e do seu preço mais baixo, há outras coisas a ter em conta nesse reconhecimento internacional. Tem o simbolismo de vir de países do Médio Oriente rico que fazem parte do grupo dos países de desenvolvimento humano muito elevado, mas com uma estreita relação económica (e política) com a China, o que foi certamente relevante. Não estamos, por isso, a falar de países pobres ou de baixo desenvolvimento, onde já era expectável a difusão das vacinas chinesas. Os Emirados ocupam o 31º lugar do índice de Desenvolvimento Humano (IDH) do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) de 2020; e o Bahrain ocupa o 42º lugar desse mesmo índice. (Para termos uma ideia comparativa, Portugal está em 38º lugar.) Com a generalidade mundo afectada pela pandemia, as vacinas são, assim, um terreno maior de afirmação de soft power. A sua qualidade e eficácia dá prestígio às empresas ou organizações que as criaram e naturalmente também ao(s) seu(s) Estado(s) de origem. Para além disso, uma disponibilização rápida e em grandes quantidades mostra capacidades produtivas e logísticas que impressionam. Quanto ao seu fornecimento a baixo custo e/ou a sua doação aos países e populações mais necessitados — ou seja, grande parte do mundo — são uma demonstração de solidariedade humana. Nesta competição, a China e Rússia estão numa aliança tácita para contrariar a influência americana e ocidental no mundo. Os EUA e os seus parceiros ocidentais desenvolvidos estão à defesa, quer no plano médico-científico, quer na capacidade de produção, quer na capacidade (e vontade) de ajudar os mais necessitados.

5. Caso se confirmem as projecções efectuadas por diversas organizações económicas internacionais (e também em trabalhos de perfil mais científico, ou mais especulativo), a economia chinesa irá ultrapassar a americana algures até ao final da década de 2020. A ser assim, será não apenas um momento simbólico que irá ‘apagar’ as memórias de um século, ou até mais longas, de supremacia económica americana. Terá certamente repercussões na ordem económica (e política) mundial. Isso ocorrerá no Fundo Monetário Monetário (FMI), mas também em várias outras organizações económicas internacionais onde a participação na organização — e especialmente os respectivos direitos de voto, ou peso nas decisões por mecanismos formais ou informais —, estão ligados à dimensão da economia. Implicará, desde logo, um aumento de influência e uma gradual posição dominante da China em diversas organizações. Tal transformação trará consigo uma enorme ironia pois as organizações de Bretton Woods (o FMI e o Banco Mundial) foram uma criação largamente americana do pós-II Guerra Mundial e têm sido instrumentos da sua influência no mundo. Ao mesmo tempo, como a economia é também uma base fundamental do poder político e militar, as repercussões acabarão por surgir nessas áreas, mais cedo ou mais tarde. Resta-nos aguardar para ver como (e se) no mundo real surgirão as enunciadas transformações e — questão crucial — irão ser geridas pelos EUA (em declínio relativo de poder) e pela China (em ascensão). Convém não perder de vista que, a ocorreram, irão obrigar a Europa a sair da ‘zona de conforto’ euro-atlântico onde se encontra desde os anos 1950 e a enfrentar um mundo à imagem da China.

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