Desconfinem os livros

Escrevo enquanto leitor, escritor e cidadão deste país, porque não me conformo a ver que, a pretexto de um estado de emergência, se retire de venda, com tanta leviandadem, os livros da nossa vida. Desconfinem os livros, e já.

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Existem tempos cuja excepcionalidade avocada para a realidade nos remetem para circunstâncias bizarras e distópicas, contextos desprovidos de qualquer senso ou racionalidade mediana, e que nos lançam para a obscuridade, mesmo que nos neguemos a considerá-la, ou sequer a olhar para ela. Embebidos num drama real que nos persegue faz quase um ano, ficámos imunes a ataques vis àquilo que antes da pandemia nos atreveríamos a considerar como pilares de uma sociedade culta e civilizada. Aguçámos o olhar sob os mais reles ajuntamentos, ágeis na denúncia dos prevaricadores de domingo de manhã, ajustamos o catálogo de valores para categorizar a vida com uma espécie de cardápio de onde podem ser retirados certos menus sem que o conjunto da oferta possa ser prejudicado. Tornou-se fácil a acusação, no entanto mais difícil ficou a priorização daquilo que se considera ser fundamental.  

Alheado de tudo isto, dirigi-me no passado domingo, pela manhã, a uma superfície comercial, daquelas que, fora os supermercados, ainda pode estar aberta e que vende todo o tipo de coisas, entre as quais: livros. Necessitado que estava de um código anotado de processo civil, deparei-me com a secção inteira dos livros asfixiada em papel celofane. Questionei a trabalhadora se, pelo menos, estaria permitida a venda de livros técnicos, essenciais à prática de certas profissões e a resposta foi a reprodução, por mim já esquecida, das palavras do Governo: evitar a ida às lojas para a compra de bens não essenciais. Eu bem sei que os hábitos de leitura dos portugueses não são os melhores, mas que a sua despromoção seja incentivada pelo Governo de Portugal é uma estrondosa novidade. Olhei em redor. Vi bonecos de colecção, consolas de videojogos e robôs de cozinha. No resto do percurso, onde sobejavam lojas escuras e gradeadas, senti-me espartilhado num país onde os livros estão em sufoco, amarrados e sequestrados à vista de todos sem que praticamente ninguém erga uma voz para os salvar do seu raptor: o estado de emergência.  

São tantas as medidas que ainda não foram tomadas, são tantos os sinais que ainda não foram dados, tanto que requeremos auxílio internacional sem lançar mão da requisição civil para chamar ao SNS toda a capacidade de saúde instalada. Enquanto isso os livros, as histórias, a jurisprudência, a técnica, a poesia, o romance e as letras estão feitas reféns num país de poetas. Bem sei que podemos encomendar livros online, mas, convenhamos, o prazer do livro está desde a sua procura até ao fim da leitura, está no observar atento das prateleiras, no despertar de interesse de determinada capa, no manusear das folhas e das leituras diagonais que todos passamos tempos a fazer nas livrarias por que passámos, mesmo que no fim, não compremos nenhum livro.  

Escrevo enquanto leitor, escritor e cidadão deste país, porque não me conformo a ver que, a pretexto de um estado de emergência, se retire de venda, com tanta leviandade, num país que é um Estado de direito, os livros da nossa vida. Desconfinem os livros, e já.  

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