Essas pessoas de bem e as suas metáforas de guerra

O mundo que se conta a partir do que se diz.

“Não me lembro de ver a minha rua assim, e aquilo que penso é que estou no meio de uma guerra.” Robert Labadie, médico de Amesterdão

Haja respeito pela metáfora

Devia haver um qualquer sistema de multas para a má utilização da metáfora. Um protesto com montras partidas e umas escaramuças com a polícia numa cidade europeia como Amesterdão, onde ser meio pobre é melhor que ser rico em muitos países, não devia poder ser usado levianamente como figura de retórica para um estado de guerra. Como escreve Pepa Bueno, no El País, temos de ter respeito pelos sírios que vivem há dez anos num conflito armado e nem sequer sabem quando poderão ter uma vacina para a covid-19 ou mesmo equipamento de protecção básico para os seus profissionais de saúde. Temos de saber rejeitar “as metáforas bélicas por respeito àqueles que caem sob as bombas enquanto a nós o que se nos pede é, basicamente, ficar em casa e que à nossa volta as infra-estruturas permaneçam intactas, esperando voltar a uma vida parecida à de antes”. Todos estes protestos de gente privilegiada que vem para a rua reclamar porque os governos lhes cerceiam os movimentos não são incentivados por hordas de lutadores pela liberdade. Não só há entre eles quem pretenda tirar dividendos políticos numa altura de grande fragilidade dos governos, por isso, a extrema-direita tem estado tão activa, disposta a afilar os dentes no que mostra sinais de decomposição. Como a ideia de um jovem privilegiado branco do centro da Europa a gritar contra o governo que o obriga a estar fechado em casa com todas as comodidades, tudo porque não pode sair à noite para ir beber copos e divertir-se, quando à nossa volta há um vírus a propagar-se sem contenção e a matar, sobretudo, os mais velhos e mais frágeis, pode ser uma metáfora de muita coisa, mas não de guerra. Aliás, parece mais uma alegoria do egoísmo ocidental.

Pensar na sobrevivência

A metáfora da guerra é um privilégio para quem vive sem privilégios. Para quem aparentemente não vive em situações de conflito e passa a vida a escapar da morte. Em 2020, Kadiatu Barrie perdeu vários amigos e não foi para a covid, mas para o conflito armado. E num cenário de guerra inesperado: Toronto, num país que é metáfora de prazenteiro, o Canadá. “Os jovens têm medo de sair à rua, sobretudo de noite, por medo de serem presos pela polícia”, conta à televisão pública do Canadá CBS. “Temos de estar constantemente a pensar na nossa sobrevivência.” Nascida na Serra Leoa, mas crescida na zona norte de Toronto desde os dois anos, Kadiatu Barrie não trouxe com ela a memória da guerra civil no país onde nasceu, mas aprendeu a crescer com o conflito numa das cidades do dito primeiro mundo onde seria suposto viver sem banda sonora de disparos. “Sou a mais velha de seis irmãos, assim o meu trabalho começou realmente a educar os meus irmãos e irmãs sobre a violência policial, o colonialismo e como utilizar a nossa voz.” A luta contra o racismo sistémico e a violência policial não é uma opção, mas uma necessidade em certas zonas do mundo privilegiado ocidental que reserva determinadas áreas para parques naturais da pobreza que lhe servem como uma luva ao bilhete-postal do “são todos bandidos” e do “volta para a tua terra”. Na verdade, aqui a guerra não é uma metáfora, porque quem sobrevive tem pouco tempo para jogar com uma “figura de retórica em que a significação habitual de uma palavra é substituída por outra, só aplicável por comparação subentendida”, na definição do Priberam.

Wilmington, terra de crime

Em 2020, 31 pessoas foram mortas em casos de violência com armas brancas e de fogo em Wilmington, a capital do Delaware, terra do novo Presidente dos Estados Unidos, Joe Biden (que nasceu na verdade em Scranton, Pensilvânia, mas que cresceu ali). Um aumento de 35% em relação a 2019. Ao todo, 168 pessoas foram feridas com armas de fogo, o que representou uma subida de 50% em relação ao ano anterior. “Não podemos continuar a enganar-nos, Wilmington tem demasiada violência relacionada com armas de fogo proporcionalemente ao tamanho da sua população”, diz o canal de TV local WITN Channel 22 no seu site. A cidade de 70 mil habitantes aparece esta semana na lista de piores cidades para viver nos Estados Unidos do Money Wise. Apesar das mágoas da sua cidade, Biden não assumiu grandes iniciativas para o controlo da violência armada nos EUA, ambiente de guerra onde os norte-americanos mais pobres e menos brancos se vêem obrigados a criar as suas famílias. Nos objectivos para os seus primeiros 100 dias no cargo menciona-se a correcção das lacunas que o FBI identificou no sistema de controlo de cadastro dos compradores de armas e a revogação da protecção de responsabilidade dos fabricantes de armas que permitirá serem processados por uso de armas em crimes. Alguma coisa, mas decididamente nada que vá deixar dormir descansadas as famílias que vivem em certas carreiras de tiro urbanas dos EUA, como Wilmington.

O checkpoint é uma arma

De acordo com o B’Tselem - Centro de Informação de Direitos Humanos nos Territórios Ocupados, no final de Janeiro havia mais de 100 checkpoints na Cisjordânia. Sendo uma das “restrições mais duras ao movimento dos palestinianos”, é fácil perceber como essa realidade tem um peso muito grande no quotidiano de quem vive nos territórios ocupados por Israel. Um estudo da Universidade Nacional An-Najah, de Nablus, publicado no mais recente número do Psychology and Education Journal analisa o impacto da “pressão” quotidiana destes controlos implementados por Israel para a circulação dos palestinianos na vida de cinco estudantes universitários de ambos os sexos escolhidos de forma aleatória. Os resultados do estudo mostram que os checkpoints são uma preocupação diária porque implicam constrangimentos não controlados que afectam o desempenho académico. Os sujeitos da amostra, diz o estudo, “concordaram que os checkpoints causam dores de cabeça, tensão, mau desempenho académico e frustração”. E o maior problema nem são as barreiras de controlo fixas, a maior pressão vem dos controlos aleatórios, montados ad hoc pelos militares israelitas e que introduzem um factor maior de perturbação num quotidiano já por si conturbado. Um dos sujeitos do estudo, aluno do terceiro ano da Faculdade de Educação explica assim o sentimento face aos checkpoints: “Estou sempre a pensar quanto tempo é que a barreira nos vai atrasar. Se o meu professor na universidade vai aceitar a minha desculpa? Se o professor vai prolongar o tempo do exame ou adiá-lo se chegar tarde? Também sinto pressão, transpiração, medo das agressões, da humilhação e de me mandarem dar a volta para trás.”

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