Os usos da Idade Média no discurso político atual

Dos candidatos às últimas eleições presidenciais, uns foram educados durante o Estado Novo e outros já na democracia. Porém, a visão que todos eles têm sobre o período medieval baseia-se em preconceitos e ideias estereotipadas.

“Perante este castelo eu me ajoelho em memória de Portugal, porque o país merece esta luta.” Estas foram algumas das palavras proferidas por André Ventura, candidato presidencial e líder do partido político Chega, no passado dia 17 de janeiro, perante o Castelo de Guimarães. Nos dias seguintes, Ventura visitaria o túmulo de Afonso Henriques no Mosteiro de Santa Cruz, em Coimbra, e o Mosteiro da Batalha, colocando uma coroa de flores junto à vizinha estátua equestre de Nuno Álvares Pereira.

As semelhanças entre a praxis política de Ventura e o imaginário nacionalista usado tanto pelo Estado Novo como por outros políticos de extrema-direita no atual contexto europeu já foram salientadas pela comunicação social. Segundo esta lógica, o passado medieval representaria as origens e a pureza da nação (neste caso, a portuguesa), alegadamente deturpada pelo regime político atual (a III República).

Porém, o uso da Idade Média está longe de ser exclusivo da extrema-direita. Uma análise mais atenta à recente campanha presidencial revela um cenário mais complexo. Duas afirmações são especialmente sintomáticas. A primeira aconteceu no debate televisivo de 8 de janeiro entre a socialista Ana Gomes e André Ventura, durante o qual a candidata presidencial, refutando a prisão perpétua, afirmava que “é uma questão de não voltarmos à Idade Média”, mostrando assim um uso corriqueiro do conceito de Idade Média, associando-o a tudo o que é tido como bárbaro, primitivo, violento e atrasado. Dois dias depois, no debate entre João Ferreira e Vitorino Silva, o candidato comunista afirmava que, ao contrário do que o seu oponente havia sugerido, o “povo português” já havia estado no poder em duas ocasiões: no 25 de abril de 1974 e em 1383-85, quando “aclamou o Mestre de Avis”. Esta leitura dos acontecimentos corresponde à visão marxista da história como luta de classes, promovida em Portugal por figuras destacadas do PCP como Álvaro Cunhal, e a uma ideia anacrónica, estática e transtemporal de “povo”. Para além desta campanha eleitoral, o passado medieval emerge com certa frequência no discurso político atual.  No decurso do debate público que se seguiu ao ataque à estátua do Padre António Vieira na primavera de 2020, o próprio Presidente Marcelo Rebelo de Sousa rejeitou inequivocamente um novo olhar sobre figuras destacadas do passado nacional, exemplificando com Afonso Henriques, que tinha “perseguido muçulmanos”.

Por que razão a Idade Média e, no geral, o passado, são evocados? Por que é sempre uma visão estereotipada, anacrónica ou errada desse passado? Até que ponto esses discursos são eficazes? Nestas últimas eleições presidenciais em Portugal, os candidatos que ficaram nos primeiros lugares são precisamente aqueles que utilizam esse passado para legitimar um determinado discurso, o que já aponta para uma certa eficácia. Ademais, quer a visão grotesca, quer a visão triunfalista do período medieval, estão fortemente enraizadas na sociedade e são transversais à idade, género e nível de formação dos cidadãos. Assim, as mensagens passadas pelos dirigentes políticos são assumidas como algo natural por parte de espectadores e leitores — aquilo que o investigador inglês Andrew B. R. Elliott denomina “medievalismo banal”. Isto pode contribuir para explicar a eficácia do discurso político que, no caso da extrema-direita, está muito bem articulado através de palavras, gestos e imagens, aumentando o seu efeito.

Há ainda outros fatores a ponderar. Embora destacados historiadores portugueses como José Mattoso e António Manuel Hespanha tenham advertido para o risco de analisar o passado a partir de uma perspetiva nacionalista, o peso dessa aproximação continua a ser forte na historiografia. Por outro lado, é preciso ter em conta o sistema de ensino. Dos candidatos às últimas eleições presidenciais, uns foram educados durante o Estado Novo e outros já na democracia. Porém, a visão que todos eles têm sobre o período medieval baseia-se em preconceitos e ideias estereotipadas, o que poderá significar que o sistema de ensino não experienciou as necessárias mudanças para que as novas gerações conheçam o passado a partir de uma perspetiva atualizada. Finalmente, no que concerne aos próprios partidos políticos, parece faltar um processo de revisão das análises realizadas pelos seus dirigentes históricos. Em consequência, há líderes políticos que não têm encontrado nem no sistema educativo nem na sua família política a superação de pressupostos e aproximações que lhes permita estar bem informados.

Torna-se necessário conferir uma maior importância ao conhecimento do passado nos currículos escolares, mas também atualizar e rever os manuais escolares em termos de conteúdos e metodologias. Ademais, a escola não se deveria esgotar na sala de aula, devendo a própria sociedade ser uma escola onde a investigação mais recente esteja acessível ao maior número possível de pessoas. Para isso acontecer, é preciso um maior compromisso da academia em articulação com instituições culturais, agentes sociais e meios de comunicação de forma a serem construídas pontes sólidas de transmissão de conhecimento. Promover-se-á assim um olhar mais informado e crítico sobre o passado, estando o cidadão na posição de identificar, na esfera pública e no discurso político, o eventual uso manipulado desse passado, nomeadamente quando é utilizado para legitimar um discurso de ódio, xenofobia e exclusão.

Os autores escrevem segundo o novo acordo ortográfico

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