Da ineficiência da pulverização das verbas para o teatro

A atomização de apoios não serve para a diversidade; e traz atrelada consigo o enfraquecimento do tecido produtivo teatral. Sem verbas minimamente adequadas não é possível garantir um efectivo Serviço Público.

As medidas de excepcionalidade que a pandemia determinou explicam, justificam – e diria mesmo que é louvável e humanamente incontornável – que a tutela tenha acorrido pelos mais diversos meios a tentar estancar a sangria que ela, pandemia, potenciou de forma dramática no sector da Cultura em geral; e mais gritantemente ainda no das artes cénicas. Mas em condições de normalidade, a normalidade normalizada e não a normalização da anormalidade que vem de antes, não seria curial desejar que o ministério da Cultura fosse uma espécie de sucursal da Segurança Social para o sector que tutela. Não é isso que se espera de uma Política Cultural com critérios e com rigor. A governação da coisa pública existe para servir os interesses desta, na vertente fruição e criação e por esta ordem. As questões do emprego artístico são igualmente importantes, mas adoptadas numa óptica de medidas efectivamente estruturantes, tornam-se a melhor forma de o estimular, criar, defender.

Todavia, o que se tem passado ao longo de anos, e importa interromper, é algo que não serve a nenhuma das três coisas: nem à fruição cidadã, nem à criação e ao emprego artísticos. Há é uma pulverização ineficiente de verbas e um consequente descontentamento generalizado. A falta de meios deve ser suprida e não agravada. Na generalidade, mas também para as estruturas que tenham condições de os potenciar, justamente no serviço da coisa pública. A atomização dos apoios e a consequente pulverização das verbas não resolvem questão alguma. Nem mesmo – ou muito menos – a imperiosa necessidade de estabelecer mecanismos que garantam a diversidade estética em direcção a uma “Criação responsável de massa crítica e a liberdade de criação”, como aqui escrevi noutro artigo. Estas, massa crítica e liberdade de criação, são, devem ser, garantidas por um Caderno de Encargos e por programas e projectos de natureza diferente e diferentes formas de apoios e itens nesses Cadernos de Encargos.

O fenómeno do afunilamento das opções estéticas que tem dominado as decisões, contribui mesmo para que todos os candidatos a apoios do ministério da Cultura tendam a socorrer-se, como expediente para obter esses apoios, da replicação do modelo pré-determinado por gosto e afinidades. É por isso que a atomização de apoios não serve para a diversidade; e traz atrelada consigo o enfraquecimento do tecido produtivo teatral. Sem verbas minimamente adequadas não é possível criar uma coluna dorsal de estruturas com meios suficientes para garantirem um efectivo Serviço Público. E se em termos absolutos importa reforçar as verbas, em termos percentuais relativos do bolo, não será possível uma política estruturante no conjunto sem fortalecer a dotação específica a cada vértebra dessa coluna dorsal. Sequer essa outra habilidade de encher a boca de emergências – e uma prática de lançar migalhas pelo ar a ver quem as apanha – pode iludir a questão. O rejuvenescimento do tecido produtivo teatral exige que este exista, e só existindo é possível fazer emergir o que seja. Do como, falarei depois em momento próprio para não me dispersar aqui.

A pulverização de verbas em função de quantidades aritméticas pode ser um cliché fotográfico para embelezar a miséria, mas não é com isso que a fotografia, ou radiografia, deixa de expor os cancros desta (ausência de uma verdadeira) Política Cultural. Se esta, como se defendeu, pede rigor e clareza em objectivos e elementos de avaliação mensuráveis, o custo do investimento público requer a racionalidade nos meios. Numa racionalidade que seja eficaz, em termos culturais, e eficiente em termos económicos. Não se julgue que o autor destas linhas é defensor do esbanjamento ou de distribuições à tripa-forra, quando há dinheiro. Do mesmo modo que, aceitando as proporcionalidades, não é também dos que, nos antípodas, entendem que só há dinheiro para a Cultura se primeiro houver para outras prioridades. Não: a Cultura, como a Educação ou como a Saúde são prioridades. Cada uma nas suas medidas e circunstâncias, obviamente, mas mesmo entre si entrelaçadas e sinergéticas, todas são absolutamente indispensáveis.

É evidente que importa garantir pesquisa e investigação, dar espaço a projectos de autoria, encontrar espaço para articulação com a Educação, enquadrar um teatro de segmento como infância e juventude ou outrem, cuidar de um teatro de marionetas e formas animadas, pensar no papel de teatro comunitário, não remeter para o limbo nem o teatro comercial, nem o teatro de amadores, nem o teatro universitário, nem o teatro popular tradicional de raiz rural… Mas tudo isso, e o mais, só faz sentido e se consegue tornar útil se houver um eixo irradiador, geograficamente equilibrado, que permita produção teatral de continuidade com base em companhias sustentáveis e estáveis. Nunca, também, como às vezes haverá igualmente tentações (e houve) de fazer com que isso absorva tudo e se descure o mais. Ou esse mesmo eixo é uma força centrípeta para que o mais seja igualmente estruturante e vale a pena; ou, se centrífuga, seria uma (outra) calamidade. Mas pulverizar não é sinónimo de diversificar e cobrir a diversidade. É fenómeno de manobra de diversão em relação à tal unicidade de gostos e afinidades, desmultiplicada em muitos com muito pouco. Democratizar não é massificar. Menos ainda numa massa amalgamada informe.

É preciso muito mais dinheiro? É, sim. Mas rumo a um investimento estratégico. É fácil dizer isto? Não, não é. Cria alguns anticorpos, por receios, e exige seriíssimo e redobrado esforço de equilíbrios. É difícil? Não, não é. É trabalhoso, pede bom senso e exige coragem. Mas não é isso que se deve esperar da tutela? Sim, seria. Não é isso que quem serve e adeja a tutela faz? Não, não faz. Por isso, não é para isso que se deve alertar quem decide para que não lhe impinjam as tretas do costume? É e é um contributo sincero e não um mero criticismo opinativo. Mas, sendo-o, é também uma firme disposição para não arredar pé deste combate pela Cultura na Democracia, pela Democracia na Cultura.

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