Christine vai a Caruaru e Antonioni ao sertão: o Brasil no Festival de Roterdão

Na competição, dois filmes “trans-género” que misturam referências do cinema popular e do cinema de autor confirmam o bom momento do Brasil cinematográfico.

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Madalena é a impressionante estreia na realização de Madiano Marcheti DR

Como a aldeia gaulesa de Astérix, o cinema brasileiro resiste ainda e sempre ao invasor; ou antes, a um governo de direita que procedeu a um maciço desinvestimento nas artes, no exacto momento em que a sua cinematografia alcançava um nível de exposição internacional inédito desde os tempos do Cinema Novo. Temeu-se o pior, mas desde que Jair Bolsonaro foi eleito em 2018 não faltou grande cinema brasileiro, com o Bacurau de Kleber Mendonça e Juliano Dornelles à cabeça de um pelotão ao qual vêm agora juntar-se, no Festival de Roterdão, o novo filme de Renata Pinheiro e a estreia na longa-metragem de Madiano Marcheti.

Renata Pinheiro, conterrânea pernambucana de Kleber que conhecemos, por cá, de Amor, Plástico e Barulho (2013), aposta em Carro Rei (Big Screen Competition), a sua terceira longa-metragem, em entrar pelo cinema de género. É uma avenida que parece atrair sobremaneira os brasileiros, como sabemos quer por Bacurau quer pela obra de Juliana Rojas e Marco Dutra (aliás, Rojas é creditada como consultora de argumento em Carro Rei), e faz sentido que assim seja: a presença do misticismo afro-brasileiro e do melting-pot de culturas e antepassados significa que estamos sempre à beira de atravessar para uma qualquer “quinta dimensão” de fantasia. Este conto de fadas do rapaz que ouve os carros falarem e da revolta motorizada dos carros atirados para a sucata por uma nova lei é uma alegoria transgénero do Brasil moderno, em busca de um equilíbrio utópico entre a máquina e a natureza, algures entre o Herbie de Walt Disney e a Christine de John Carpenter, mas que remete também para o fetichismo cronenbergiano da “nova carne” (na presença transgénero de Jules Elting, que recordamos como a valquíria de O Ornitólogo de João Pedro Rodrigues).

É, aliás, por isso que Carro Rei é também um filme desequilibrado: o cocktail de referências exige uma flexibilidade de tom e timbre que a realizadora nem sempre consegue manter, como se a ideia dos carros como entidade viva fosse aquilo que realmente interessa e tudo o resto tivesse de se submeter ao “carro rei”. Mas, na sua abordagem aos riscos imprevisíveis das utopias bem-intencionadas e na sua postura de filme B subvertido/subversivo sobre a luta de classes, trata-se de uma confirmação de que a inventividade está longe de desaparecida pelos lados do país-irmão.

E já que falamos de género podemos fazer a ligação com o ovni que uma das personagens de Madalena (Tiger Competition) diz ter visto. Estamos no Mato Grosso, não muito longe de onde o realizador Madiano Marcheti cresceu, campos a perder de vista onde se cultiva a soja e as vidas parecem perpetuar-se e repetir-se. Mas o que Marcheti filma não é o que se vê, é o que não se vê: Madalena, que dá título ao filme mas nunca é mostrada, presença ausente, buraco negro no centro de uma estrutura em três partes que funciona em simultâneo como rigorosa diagonal da sociedade de classes e olhar compassivo sobre aqueles que não estão em posição de resistir à pressão das convenções. Madalena desaparece, como Anna o faz na Aventura de Antonioni, e Marcheti filma o que (não) fica dela, acompanhando o modo como essa ausência afecta três pessoas que não se conhecem entre si.

Sumptuosamente fotografado por Guilherme Tostes e Tiago Rios, Madalena não se esgota contudo na simples evocação do mal de vivre moderno, pois só perto do final nos é revelado quem era Madalena e o particular modo como o seu desaparecimento ressoa no Brasil de Bolsonaro. Poderia ser uma resolução de mau gosto se o filme não tivesse jogado limpo com o espectador, deixando pistas discretamente ocultas e construindo lentamente um impacto emocional que o genérico final vem amplificar de modo eficaz e directo. Sem meias medidas, Madalena é o melhor filme que vimos até agora em Roterdão, a confirmação do bom momento do cinema brasileiro, e uma impressionante estreia na realização. 

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