Coronavírus
Na segunda maior favela de São Paulo, “o isolamento social é um luxo inacessível”
Entre Março e Abril de 2020, o fotojornalista Gui Christ documentou para o projecto The Luxury of Social Isolation a realidade de Paraisópolis, a segunda maior favela de São Paulo, onde vivem 150 mil pessoas: "Esta já era, antes da pandemia, uma zona pobre, com fraco acesso a serviços públicos de saúde, educação; agora essa vulnerabilidade tornava-se ainda mais visível."
Para os moradores da favela Paraisópolis, a segunda maior de São Paulo, no Brasil, "o isolamento social é um luxo", afirma o fotodocumentarista brasileiro Gui Christ, que passou dez dias no local, entre Março e Abril de 2020, a observar e a documentar o impacto da pandemia de covid-19. Um luxo "inacessível" para os 150 mil residentes que ocupam o espaço físico de 8 quilómetros quadrados — cerca do dobro do Central Park de Nova Iorque — e que vivem em condições muito precárias, "muitas vezes sem acesso a água canalizada, saneamento básico, recolha de lixo".
Ao caminhar pelas ruas de São Paulo, nessa altura, Gui Christ deparou-se com um cenário deserto. "Esta é uma metrópole que não pára e, nesse período, parecia uma cidade do Canadá durante o Inverno. Não se via vivalma. Mas ao entrar em Paraisópolis, parecia que nada tinha mudado. O movimento de pessoas era igualmente intenso, as lojas mantinham-se abertas." Apesar das aparências, a favela tinha mudado. "E para pior", garante Gui. "Esta já era, antes da pandemia, uma zona pobre, com fraco acesso a serviços públicos de saúde, educação; agora essa vulnerabilidade tornava-se ainda mais visível."
O desemprego disparou entre os moradores e a necessidade de apoio social tornou-se premente. “Muitas pessoas não têm a alimentação necessária para ter imunidade e não têm, além disso, possibilidade de cumprir o distanciamento social naquele contexto”, explica Gui ao P3, em videoconferência a partir de São Paulo. “Visitei habitações sem janelas, sem ventilação, sem luz directa, onde, por vezes, vivem duas ou três famílias.” Oito pessoas a dormir em quartos de quatro metros quadrados não é incomum, descreve o fotógrafo.
Paraisópolis é cercada pelos bairros mais ricos de São Paulo, refere o fotógrafo. “A desigualdade social está à vista de todos.” Existe uma relação de dependência profissional entre a favela e esses bairros. “Muitas das mulheres de Paraisópolis trabalhavam, nos bairros vizinhos, como empregadas domésticas, mas o medo de contágio fez com que perdessem os trabalhos.” Os transportes deficitários, os autocarros cheios, a situação de sobrelotação das favelas deram origem, também, a situações que Gui descreve como sendo de “escravatura dos tempos modernos”. “Alguns empregadores exigiram às suas empregadas domésticas que não voltassem a casa, que ficassem, sem quaisquer condições, a residir no local onde trabalhavam.”
A falta ou a insuficiência de apoios governamentais torna a situação ainda mais complexa. “Conheci muitos moradores que, sem emprego, dedicam o tempo a procurar donativos de instituições ou trabalhos pagos à jorna para poderem alimentar-se, e à sua família.” O teletrabalho não é uma opção para quem realiza trabalho braçal, sublinha o fotógrafo. Em desespero, sem emprego ou dinheiro, há quem, como a mulher retratada na imagem número 13 desta fotogaleria, vasculhe o lixo dos prédios “ricos” para encontrar comida. “Uma situação que me chocou muito”, lamenta Gui.
O auxílio do Governo tardou. “E quando finalmente foi accionado, deu origem a inúmeros problemas. Estamos a falar em pessoas que não têm contas bancárias, que têm problemas de alfabetismo, que não têm acesso a meios digitais ou ligações à Internet, que de repente dependiam do sistema bancário para recolher a ajuda que lhes foi atribuída pelo Estado.” Filas de enormes proporções surgiam, diariamente, às portas das sucursais do Banco Federal Brasileiro, compostas por pessoas que não tinham outra forma de recolher esse apoio. “Tudo era motivo para aglomeração”, descreve o brasileiro.
Para fazer face à ineficácia da resposta estatal, os moradores, comerciantes e organizações não-governamentais criaram a União dos Moradores e do Comércio de Paraisópolis, uma estrutura para fazer face às dificuldades que surgiram em consequência da pandemia. “Juntos conseguiram juntar uma equipa de 400 voluntários para ajudar os vizinhos em necessidades. Chegaram, no início, a distribuir 10 mil refeições por dia – hoje, apenas 500. Contrataram profissionais médicos e criaram estruturas de apoio para que os infectados pela covid-19 não tivessem de regressar a casa, protegendo assim as suas famílias de contágio.” Uma iniciativa civil cuja força já esmoreceu, de acordo com o fotógrafo, e que não encontra oxigénio em estruturas do governo em vigência.
O projecto The Luxury of Social Isolation foi realizado pelo fotógrafo a pedido da National Geographic, através do Fundo Emergencial de Covid-19 para jornalistas da National Geographic Society. Gui Christ é fotógrafo freelancer e é colaborador regular da National Geographic, da revista TIME, Billboard, The Washington Post, Al Jazeera, entre outros.