Concorrente do estaleiro de rabelos de Gaia não tem interesse em o substituir

Em Vila do Conde já se construíram embarcações da mesma tipologia dos rabelos, para o turismo, mas não há meios humanos nem interesse no concurso anunciado pela APDL.

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A APDL deu ordem de despejo ao último estaleiro de rabelos instalado na margem de Gaia Nelson Garrido

Os proprietários dos estaleiros Samuel & Filhos, um dos últimos bastiões da construção e reparação naval em madeira em Portugal, não estão interessados em participar em qualquer concurso que a Administração do Porto do Douro e Leixões venha a abrir para um estaleiro em Gaia. Apesar de serem concorrentes da Socrenaval, que está em litígio com a APDL e sob ameaça de despejo, a empresa de Vila do Conde considera que não há hoje em Portugal mão-de-obra qualificada suficiente para expandir a actividade. “É importante que aquele estaleiro continue a funcionar”, assume, até, José Manuel Carmo “Samuel”. 

Alheios à polémica entre a APDL e o estaleiro de António Dixo de Sousa, na qual não se querem envolver, os dois primos que mantêm viva a tradição iniciada pelo avô Samuel do Carmo em 1935 têm os seus próprios desafios para resolver. Que decorrem, precisamente, do esboroar do saber-fazer da carpintaria naval em madeira um pouco por todo o país. Como eles, as outras duas firmas que operam na margem sul do Rio Ave já se voltaram para outros materiais, como o aço, há muito tempo, mas por ali ainda há muito trabalho com a reparação de inúmeras embarcações de madeira, muitas delas construídas noutros lugares onde deixou de haver quem lhes faça a manutenção.

“Nós já temos sido desafiados para nos instalarmos noutros pontos do país, mais a sul, mas não há condições para isso”, revela José Manuel Carmo. Por essa costa fora, o problema é o mesmo. Uma boa parte da frota de pesca artesanal ainda é de madeira, e velhinha, mas tirando alguns reformados e trabalhadores independentes com conhecimentos das técnicas de calafeto e carpintaria naval, e os pequenos estaleiros que mantêm operacionais barcos como os da arte xávega, os moliceiros na zona da Ria de Aveiro, ou as embarcações tradicionais do Tejo, em Sarilhos Pequenos, não há empresas para tratar dela.

É por isso que, para além de traineiras de Sesimbra ou Peniche, também aparecem rabelos para reparar em Vila do Conde, onde há notícia de construção deste tipo de embarcações no século XIX – muito provavelmente para o Douro, explica António José Carmo, antigo desenhador do estaleiro da família, primo de José Manuel e investigador das técnicas antigas de construção naval em madeira. Aliás, nas margens do Ave, só nas últimas décadas construíram-se quatro embarcações desta tipologia, maiores, adaptadas para o transporte de turistas, e todos os anos entram no Ave, viajando pelo mar, algumas para reparação. 

Sinais dos tempos, também já existem “rabelos” em aço, ou barcos parecidos com os rabelos, nesse material. Em Vila do Conde, lado a lado, estão neste momento em manutenção um destes e um de madeira, com uns 30 metros, o que faz desta empresa um concorrente da Socrenaval. Mas nem por isso José Manuel Carmo deseja sobrepor-se à empresa de Gaia. “Sim, eles não são os únicos a fazer rabelos. Mas é importante que exista ali um estaleiro, nem que seja, desde logo, para acudir com rapidez a situações mais urgentes. Há trabalho para todos”, assume o vilacondense.

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Em Vila do Conde ainda se sabe construir naus e caravelas. Mas a arte está a perder-se.

No Douro, como no mar, a madeira vai dando lugar a outras matérias-primas, mas há quem não queira perder o rasto às antigas técnicas, mesmo que, nalguns casos, como nos rabelos, elas nem estejam já em uso. Os novos rabelos ainda levam aquele tabuado trincado, ou parcialmente sobreposto, que além da sua forma os atiram para uma possível origem nórdica, mas António José Carmo considera que há muito saber perdido que poderia ser eventualmente recuperado, em benefício de quem mantém viva a arte mas sobretudo da cultura marítimo-fluvial do país. 

É nesta tecla que bate também Ivone Magalhães, outra das vozes que, no país, têm lutado pela valorização do património imaterial associado à construção naval em madeira. A directora do Museu Municipal de Esposende e estudiosa das embarcações tradicionais assiste boquiaberta ao conflito, temendo que, independentemente de quem tenha razão, se perca o último estaleiro do Douro. E nem importa que lhe digam que já não são como os originais, documentados ainda há décadas por Octávio Lixa Filgueiras, os rabelos que ali se fazem. 

Mesmo com a evolução tecnológica, “aquele estaleiro é património etnográfico” de Gaia, avisa Ivone Magalhães. Nos gestos, na linguagem, no saber-fazer, há, insiste, todo um legado que as instituições públicas têm a obrigação de ajudar a preservar, de preferência mantendo-o vivo, nos lugares onde são tradição, diz, num apelo ao entendimento entre as partes. 

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Em Vila do Conde, António José Carmo espera que o definhar da arte possa ser sustido, pelo menos, através de uma das peças mais importantes do projecto local Um Porto para o Mundo. O município pretende instalar uma oficina de construção naval em madeira na antiga Seca do Bacalhau, que serviu, em tempos, de sala do risco para projectos de embarcações, e a partir dela o antigo desenhador da Samuel & Filhos gostaria que se pudesse aprofundar o estudo das técnicas e proporções geométricas usadas para chegar a muitos barcos que fazem parte do nosso património, como por exemplo, aos rabelos. Que, além de já não terem muitos sítios onde se construam, ainda encerram alguns mistérios. 

 
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