Homero na Católica

A covid-19 entrou na minha vida sem aviso prévio. Os versos homéricos também. Ao mesmo tempo que o mundo fechava fronteiras e entrava em confinamento, atravessei horizontes e oásis com Homero.

Já passou quase um ano. Na altura, julguei que tinha cometido um grande erro. As artes sempre foram o meu calcanhar de Aquiles. A curiosidade levou-me a inscrever-me na cadeira “Homero: Política, Guerra e Vida”, no Instituto de Estudos Políticos da Universidade Católica Portuguesa. Sempre ouvi falar da Ilíada e da Odisseia. Porém, ouvir falar é muito diferente de ler. No final de 2019, os dois poemas continuavam a ser uma realidade distante para mim. No último semestre do curso de Ciência Política e Relações Internacionais, decidi aproveitar a oportunidade para, finalmente, ler Homero.

O meu problema inicial foram os quadros de pintores como Charles-Antoine Coypel (A cólera de Aquiles), Peter Paul Rubens (O julgamento de Páris), Tintoretto (O rapto de Helena) ou o fresco de Rafael Parnasso. A seguir, enfrentei uma legião de nomes como Criseida, Briseida, Agamémnon, Menelau, Odisseu, Nestor, Tersites, Príamo, Heitor, Páris, Antenor, Teucro, Licáon, Diomedes, os dois Ájax, Hécuba, Andrómaca, Astíanax e expressões como “aqueus,” “atridas” ou “argivos.” Senti-me completamente perdida e cheguei mesmo a pensar que me tinha enganado ao inscrever-me numa cadeira que liga a política, a guerra e a diplomacia às artes. Tal como um certo guerreiro astucioso, que sofreu muito até conseguir regressar a Ítaca, tive alguma dificuldade em encontrar o Norte na minha cadeira homérica.

A Ilíada começa com uma disputa entre Agamémnon e Aquiles sobre duas belas raparigas, Criseida e Briseida. Em causa estão coisas como poder, honra, estatuto e liderança. Homero mostra-nos que as mulheres sempre foram vítimas da guerra. Para a maioria, o seu destino no poema é violentíssimo. Um exemplar de O Silêncio das Mulheres, um livro de Pat Barker, de uma das minhas colegas, marcou presença nas primeiras aulas. A recusa de Agamémnon devolver Criseida a seu pai deu origem a uma epidemia de peste que devastou o acampamento dos aqueus. Macáon e Podalírio, os primeiros médicos da literatura europeia, não sabiam o que fazer e a doença teve grandes repercussões políticas na coligação dos líderes argivos em Tróia.

No dia 11 de Março comecei a entender melhor as consequências pessoais de uma pandemia. Foi nesse dia que a Universidade Católica encerrou. Outras, fizeram o mesmo durante essa semana. Mais tarde, apoderou-se de mim uma sensação de impotência em relação aos acontecimentos da minha vida. Como é que uma coisa daquelas podia acontecer de uma forma tão repentina no último semestre do meu curso? Num dia estava em Lisboa com os meus colegas. No outro, fechada em casa, em Loulé. O resto do país fez o mesmo. Os psicólogos explicaram-nos nos últimos meses que o isolamento social é um grande desafio pessoal e profissional. Emoções como a saudade, o cansaço, a injustiça ou a impaciência são normais neste tipo de situações.

A transição para o Zoom retirou-me a insubstituível experiência que tinha sido a leitura de Homero com os meus colegas nas salas de aula. Tive imensas saudades das nossas conversas, dúvidas e divergências homéricas nos convívios da faculdade. Senti falta das nossas emoções, expressões de espanto e tristeza e das demonstrações de algumas cenas mais militares da Ilíada. Como percebemos num dos anfiteatros da Católica, Menelau é muito melhor guerreiro e atleta do que Páris.

Não me recordo do dia exacto em que a leitura da Ilíada começou a ter um impacto emocional em mim. Talvez tenha sido quando fiquei perplexa ao ver o belo Páris exibir-se fora das muralhas de Tróia vestido com uma pele de leopardo e, com um ego bem maior do que a sua força de espírito e coragem, desafiar os melhores dos argivos para um duelo. Hoje em dia, Páris certamente ter-se-ia tornado viral no Instagram. Talvez tenha sido quando senti o peso do dilema de Heitor, entre o seu dever para com Tróia e o amor e devoção por Andrómaca e o pequeno Astíanax no final do canto VI. O que fazer naquela situação? Nunca ultrapassarei completamente o seu derradeiro destino. Ou então, talvez tenha sido o flagelo de assistir à aterradora transformação a que Pátroclo se sujeitou para socorrer os aqueus e afirmar a honra perdida de Aquiles no canto XVI.

Revolta, incompreensão, ambiguidade, alívio, estupefacção e empatia. Foram alguns dos sentimentos que surgiram ao ler Homero. Ao contrário do que esperava, a leitura da Ilíada dentro das quatro paredes do meu quarto no Algarve abriu-me uma janela nestes tempos de incerteza, através da qual me senti simultaneamente espectadora e agente na trama do primeiro poema da literatura europeia. Amei e odiei como os aqueus e os troianos.

A covid-19 entrou na minha vida sem aviso prévio. Os versos homéricos também. Ao mesmo tempo que o mundo fechava fronteiras e entrava em confinamento, atravessei horizontes e oásis com Homero. O panorama actual levanta-me imensas dúvidas em relação ao meu futuro e o da minha geração. Quais serão as consequências da “Grande Pausa”? Que efeitos económicos e políticos terá a pandemia? Não sei. Homero, todavia, fez-me recordar de onde viemos. Confirmou-me também o tremendo poder da literatura.

No canto II da Ilíada está o célebre Catálogo das Naus dos aqueus e dos aliados dos troianos. É uma passagem muito interessante do ponto de vista político e geográfico. As alianças sempre foram laços importantes na política internacional. Todavia, o que me chamou mais atenção foi o catálogo dos seres humanos na Ilíada. Acho que serei sempre acompanhada por Helena, uma personagem trágica entre a beleza e a impossibilidade do amor, Heitor, que me ensinou tudo sobre a coragem, honra, dever e amor, e Aquiles que, afinal, mostrou ser bastante mais humano e capaz de fazer inveja aos deuses no Olimpo. Quanto a Agamémnon, aprendi o que um líder político e militar não deve fazer. Um exemplo de um comandante-chefe detestável.

Ler, conversar e escrever sobre a Ilíada foi uma experiência muito intensa para mim. Num período tão surpreendente como este, acabei a minha licenciatura no Instituto de Estudos Políticos da Universidade Católica com um poema extraordinariamente belo e perturbante sobre a condição humana. Afinal, não cometi nenhum erro. Homero, que me inspirou e me mostrou novas maneiras de olhar para o mundo e viver uma vida, acompanhar-me-á para sempre.

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