Nervos de aço e coração aberto

A definição mais próxima de felicidade é paz interior, é projectar a nossa felicidade no outro. Daí que um genuíno “obrigado” é algo que não tem preço, mas enriquece-nos a alma para todo o sempre.

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"Nós somos melhores do que o que pensamos, se formos uma equipa com nervos de aço e coração aberto" Filipa Fernandez

Numa crise vemos o melhor e o pior das pessoas. Vemos maldade extrapolada a níveis desconhecidos, mas vemos também bondade em estado puro. Estamos a viver uma situação muito difícil. Ultrapassamos limites já bem para além do que pensávamos ser possível. Estamos a ser postos à prova por um desafio da natureza que não tem paralelo na nossa existência, e cuja desenvoltura se vai explanando à nossa frente num caminho em direcção ao desconhecido. Precisamos de ser fortes. Precisamos de ir buscar forças que desconhecíamos ter, e estas residem na profundidade da beleza das nossas emoções. Temos que pensar em equipa. Somos todos feitos do mesmo.

A pergunta que eu faço a mim próprio quando me encontro com tempo para reflectir, sobre decisões que aparecem em forma de encruzilhada e labirintos infinitos em espiral é: “O que é que eu gostava de escrever, quando olhar para trás e quiser contar o livro da minha vida?” O que é que vou querer levar comigo para todo o sempre. Porque das minhas memórias não me safo. E a definição mais próxima de felicidade é paz interior, é projectar a nossa felicidade no outro. Daí que um genuíno “obrigado” é algo que não tem preço, mas enriquece-nos a alma para todo o sempre.

Nos hospitais todos os sorrisos são a fingir. Estamos a sofrer. Cá fora a nossa vida tem-nos dado poucos motivos para alegrias e lá dentro estamos a ser varridos por um mar de tristezas, que embora emprestadas, carregamos para todo o sempre. Nervos de aço e coração aberto. Mas nem tudo é triste. Estão-se a construir coisas bonitas. As equipas estão coesas, íntegras e solidárias a um limite que o companheirismo e a amizade não podem, por si só, explicar. Seguramo-nos uns aos outros. E este “segurar” não é poético, é literal. Porque só assim seguramos os doentes que mais do que nunca precisam de nós. Já perdi a conta às vezes que me vieram as lágrimas aos olhos ao ouvir do outro lado do telefone “É preciso que vocês tenham muita força!”... “Vocês são tudo o que nos resta para termos esperança!”... Também é aqui que nos transcendemos, também é com estas palavras que prometemos a nós próprios que será até ao último fôlego, mas não chegaria para o alimento que precisamos. O que nos alimenta é ouvir um sincero, tímido, profundo e agora enfraquecido “obrigado”. É o “obrigado” de quem tem alta dos Cuidados Intensivos e vê ultrapassada a etapa do que poderia ser a última jornada da sua vida. Mas não foi. E por isso sai um “obrigado” que nos faz ter a certeza que estamos do lado certo da luta, e que mais uma página da nossa vida ficou com uma história bonita. Salvamos vidas.

E vamos acumulando “obrigados” de gente que nem sabe quem nós somos, e em boa medida nem se lembrará de tudo o que fizemos por eles. Mas isso pouco interessa, porque trabalhamos numa equipa enorme que se chama SNS, e pensamos em equipa. E se já sabíamos, a cada dia mais sabemos que esta equipa de gente que ajuda e quer ajudar está-se a tornar maior, porque as fragilidades individuais e colectivas vão aumentando. Há muita gente que precisa de ajuda e não está, nem estará num hospital. Há muita gente que vos está a dizer a todos... “É preciso que vocês tenham muita força!”... “Vocês são tudo o que nos resta para termos esperança!”... E essas pessoas estão aí ao virar da esquina. E tal como os doentes, os mais graves são os mais silenciosos, e são esses que mais precisamos de ajudar. Os que perderam o emprego, os que não sabem como manter o seu negócio, os que não sabem como dar de comer aos seus filhos, e os que encontram no céu aberto a sua nova casa. E é para esses, e também para esses, e cada vez mais, especialmente para esses que temos que pensar em equipa. Temos que unir esforços, ideias, pressões políticas, arte e imaginação, para que dos frágeis venham sorrisos e genuínos “obrigados. Há muita gente que tem mais do que precisa, e ficaria muito mais rico se recebesse mais “obrigados”.

É um desafio longo, duro, doloroso e que parece que é maior do que nós. Mas não é. Nós somos melhores do que o que pensamos, se formos uma equipa com nervos de aço e coração aberto.

Um dia vamos olhar para trás para este pedaço de memórias, mas a pergunta tem que ser feita hoje: “Que história é que vamos querer escrever nas nossas vidas?” Que seja bonita e a transbordar de “obrigados” anónimos e genuínos, porque isso é que é ser feliz.

Nervos de Aço e Coração Aberto.

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