O coração ainda bate. O prato

“Anoréctico” – foi a primeira vez que ouvi a palavra dita no masculino e foi também a primeira vez que assisti à luta de um corpo franzino contra aquilo que o podia fazer forte, mas sabem, o que nos faz fortes nem sempre tem a mesma medida.

Foto
Mag Rodrigues

Naquele quarto cheio de gente foi ele que deu nas vistas. Ficava nervoso na hora das refeições e uma brigada de enfermeiros rondava-o ali perto da cama. Um dedo vinha sempre apontado para o prato: “olha que assim nunca mais voltas para casa!”.

De início não percebi logo o que se passava. Primeiro segui a avó com um neto que perdera a locomoção e a possibilidade de ser ele próprio: a vida tinha-o abandonado mas ele ficava ali de olhar já perdido, e aquela avó, todos os dias lhe limpava o suor da testa, os cantos da boca, o que lhe restava da dignidade e ficava nas mãos dela. Esse gesto de ela lhe puxar o cabelo para trás, ainda o preservo com nitidez. Era o amor, pensei. Ainda penso.

Havia também uma menina indiana sempre rodeada da sua família grande. Todos com um sorriso por extenso independentemente do que ali os retinha: ela.

Eu também ali estava por motivos maiores e menos felizes mas o que conto agora é a história do rapaz que lutava contra o apetite.

Anos passados sobre este episódio percebo que ele se assemelhava ao miúdo que fazia de Billy Elliot. Lembram-se? Franzino, determinado, certo nos seus passos contra o mundo. Será hoje, aquele miúdo, um homem certeiro nos seus passos?

O tabuleiro chegava e um quartel-general montava-se ali mesmo. Ele e os enfermeiros, mais o prato, a sopa, a fruta (às vezes a gelatina), um sumo, se calhar, não sei. Do que me lembro era da falta de vontade dele, ou antes, da determinação dele em demonstrar falta de vontade.

Os alimentos eram chutados para canto, para o canto do prato, e ele ficava ali a driblá-los com eficácia enquanto os enfermeiros se acotovelavam naquele jogo em que alguém queria reclamar vitória. Essa vitória, enquanto lá estive, nunca chegou.

Quem chegava todas as noites era a mãe dele. Vinha cansada de um dia de trabalho, fazia mais de cem quilómetros para ver o filho, dava-lhe banho mas não lhe contava histórias: começava ali uma agressão feita de cansaço e incompreensão por ela ter encontrado no quarto dele, de novo e outra vez, mais comida, mais chocolates, mais lanches escondidos em sítios improváveis. Já a avó e o neto dormiam, já a menina indiana sonhava, e eles discutiam sobre a comida armazenada que afinal ele nunca comera. Era isso que o mantinha ali: estava há meses a tentar voltar para casa e eu a concluir que ele não queria. Ou não conseguia?

Dez anos passados, ainda me dói ver o esforço daquela mulher que, depois de 200 km, chegava a casa sem nada nas mãos: era só o filho nos braços que ela queria, alimento para qualquer mãe.

Quando por fim saí do hospital com a minha filha pela mão, o rapaz ainda lá ficou. Estava, num dia como outro qualquer, a lutar pelo que não queria comer. E nessa noite a sua mãe viria certamente dar-lhe banho e lembrar-lhe do cansaço e da viagem. Da viagem interminável para o ter de volta mesmo que fosse intermitente.

“Anoréctico” – foi a primeira vez que ouvi a palavra dita no masculino e foi também a primeira vez que assisti à luta de um corpo franzino contra aquilo que o podia fazer forte, mas sabem, o que nos faz fortes nem sempre tem a mesma medida. Nem sei se à mãe, no meio de tanto sofrimento, também isso não fazia dela mais forte. Os dois chamavam à atenção por mais. A mim pareceu-me só que era por mais amor.

Antes da última imagem dela a metê-lo na cama, olhei para a avó que dormia ao lado do neto com o cabelo empurrado para trás.

O amor tem lutas que a razão desconhece.

Sugerir correcção
Comentar