O ódio à igualdade

Vivemos imersos na cultura da desigualdade e rodeados de instituições que na sua acção a fomentam. A igualdade assusta.

Há sempre esta sensação de que não estamos em sincronia com a história. Algumas vezes adiantados, a maioria atrasados, nunca sintonizados. Sempre a chegar aos acontecimentos globais mais nocivos na hora em que os outros começam a repará-los. Trump lá foi à vida — embora as feridas que o elegeram se mantenham — no momento em que André Ventura ganha espaço por aqui. Há uns anos dizíamo-nos imunes à extrema-direita, enquanto os nossos vizinhos (Espanha, França e Itália), para nos ficarmos pelas redondezas, já se debatiam com o fenómeno. Agora, ei-lo aqui.

Repete-se o efeito que se sente em relação a tantas outras ocorrências globais. A turisficação, por exemplo. Durante anos comentávamos o estado a que haviam chegado Barcelona ou Berlim. Quando os mesmos efeitos cá chegaram, a tentação foi desvalorizar, até porque de certeza iríamos aprender com os erros cometidos por outros. Anos depois, algumas dessas cidades já estão noutro estádio, com o bem comum a ser cuidado e posto a salvo de meros interesses privados, enquanto aqui continuamos em fuga para a frente. O mesmo com a extrema-direita. Podia ter-se compreendido alguns equívocos cometidos noutros lados e até beneficiado com as governações desastrosas (EUA, Brasil, Índia) da nova geração de populistas, mas nada disso sucedeu. Até a ressaca das eleições parece uma mera repetição daquilo que já se vislumbrou com Trump ou Bolsonaro.

É um filme já visto. Repete-se aqui os mesmos indícios no dia seguinte às eleições. Uns diabolizam os votantes de Ventura e o ecossistema comunicacional e outros argumentam que existe imensa gente zangada, que não se sente representada, que as elites perderam o contacto com essas fatias descrentes, sendo preciso resgatá-las porque o seu voto é de protesto e não de convicção.

É verdade que existe hoje uma amálgama de pessoas comuns — a maior parte pertencente a estratos daquilo que era a antiga classe média — que não só perdeu vias de ascensão social, como viu a sua identidade ser dissipada. E também é certo que os impasses do neoliberalismo e a dificuldade em formular alternativas consistentes abriram as portas à extrema-direita, tal como é certo que esta não tem programa para nada — a solução para a crise da democracia é acabar com ela e o combate às desigualdades é simular que se afronta os poderes estabelecidos, mas acossando apenas os mais fragilizados (imigrantes, negros, ciganos, etc.).

E, no entanto, falta algo. O filósofo Jacques Rancière, numa reflexão recente a propósito dos incidentes do Capitólio, formulava uma hipótese. E se o poder de atracção destas figuras não colhesse junto de nenhuma classe em particular, não tivesse que ver com sentimentos de reparação, mas sim com a manutenção de privilégios a todo o custo contra aqueles que desejam pô-los em causa? Diz ele que não existe nada de misterioso no entusiasmo que estas personagens invocam, trata-se da “paixão pela desigualdade.”

Ou seja, aquela que permite, segundo diversas camadas, independentemente de falarmos de ricos, remediados ou pobres, encontrarmos uma multidão de inferiores sobre os quais devemos manter a superioridade. Homens em relação a mulheres. Mulheres brancas em relação a negras. Trabalhadores sobre desempregados. Locais sobre imigrantes. Heterossexuais sobre população LGBTQ+. Os que podem ter assistência privada sobre os que dependem dos serviços públicos. Quer dizer, as hipóteses são inúmeras. Há sempre uma superioridade da qual podemos participar. Somos quase sempre capazes de encontrar alguém que consideramos mais inferior e desfrutar da superioridade sobre ele.

A manutenção dessa supremacia relativa depende da inferiorização sistemática, não escolhendo regiões e não sendo exclusivo de qualquer camada social. Vivemos imersos na cultura da desigualdade e rodeados de instituições que na sua acção a fomentam. O ódio à igualdade vem daí.

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