Fiscalizar quem foge ao confinamento é um “jogo do gato e do rato”

Forças de segurança estão mais presentes nas ruas no encalço de quem tenta contornar as regras decretadas no âmbito do estado de emergência, seja por não usar máscara, furar o confinamento obrigatório ou ter estabelecimentos abertos a vender bebidas alcoólicas. “As pessoas arranjam sempre uma desculpa.”

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Centro de Lisboa, 22h, Rua Luciano Cordeiro. A denúncia chegara há minutos: o dono de uma loja de conveniência mantém-se dentro de uma carrinha branca, estacionada à porta do estabelecimento. Quando se aproxima um cliente que já sabe do “esquema”, sai discretamente da carrinha, entra na loja e vende bebidas alcoólicas. “Agora é esperar para ver se chega algum cliente e saber se é só a venda de bebidas, que também é contra-ordenação, ou se está efectivamente alguém lá dentro”, diz o comissário Bruno Branco, responsável por uma das equipas do Comando Metropolitano de Lisboa da PSP (Cometlis) que tem como missão detectar estabelecimentos que estão a funcionar de forma irregular durante este período de estado de emergência. 

Depois de meia hora de espera, os agentes acabaram por não conseguir apanhar nenhuma venda em flagrante, mas identificaram dois homens, alegadamente sócios, que estiveram à porta do estabelecimento durante esse tempo. O dono do estabelecimento lá lhe respondeu que morava ali próximo e que tinha ido à loja. O outro, residente em Almada, foi mandado para casa.

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Com os números de novos casos de infecção, mortes e internamentos a atingirem novos máximos quase todos os dias, Portugal continental entrou num novo confinamento geral no passado dia 15, que determina o dever de recolhimento domiciliário e o encerramento do comércio e restauração, com excepção dos estabelecimentos de bens e serviços essenciais. A restauração pode continuar a funcionar em regime de take-away ou entregas ao domicílio. Mas, um pouco por todo o país, têm-se verificado alguns abusos: venda de bebidas alcoólicas fora de horas, restaurantes a funcionar com clientes no interior — e, por vezes, sem máscara —, festas ilegais, com direito a fugas por túneis de escoamento de águas. 

Esta equipa que o PÚBLICO acompanhou numa acção de fiscalização na noite de quinta-feira conhece bem os meandros da noite. Em tempos normais, são eles os responsáveis pela fiscalização de estabelecimentos de diversão nocturna, como bares e discotecas, e da segurança privada. Agora, têm a missão de identificar e travar a actividade de estabelecimentos que estejam a cometer qualquer infracção. E, para isso, têm de manter a discrição.

Andam em carros descaracterizados, com roupa à civil. As noites, sobretudo neste período de confinamento geral, são um exercício de paciência. “Às vezes, estas denúncias demoram tempo a comprovar. Acabamos por perder umas noites, às vezes um tempinho dentro dos carros, para apanhar um flagrante. É um jogo do rato e do gato. Eles [os infractores] estão-se a adaptar”, nota o comissário. 

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Ainda na passada sexta-feira, esta equipa identificou uma festa de Erasmus num hostel na zona do Saldanha. “Implicou estar ali algum tempo a perceber o modus operandi de entrada no hostel”, descreve o comissário. “Conseguimos abordar a residência e, felizmente, deixaram-nos entrar porque senão era difícil.”

Estavam 17 estudantes na altura, alguns residentes, outros visitantes. “Conseguimos tirar os não residentes, foram autuados e foram sensibilizados mais uma vez para o perigo que correm”, conta Bruno Branco. 

Escondidos num escoamento de águas

Identificar essas situações é, como diz o comissário, um jogo de paciência. E de persistência. No sábado passado, os agentes da PSP de Loures ouviram pessoas do lado de lá das portas de um restaurante de um grupo recreativo em Camarate. Mas ninguém lhes abria a porta. Acabaram por conseguir surpreender clientes e proprietários que fugiram pelas traseiras do estabelecimento em direcção um túnel de escoamento de água, que desagua num ribeiro. 

Como havia uma forte corrente de água a entrar no túnel, os infractores acabaram por ser resgatados, tendo obrigado dois agentes da PSP a ir em seu auxílio enquanto os bombeiros não chegavam. Molhados e sem oferecer resistência, foram identificados e multados.

Na madrugada seguinte, na Pontinha, a PSP acabou também com uma festa ilegal num barracão com 50 jovens, que acabaram identificados e autuados, tendo seguido para as suas casas para cumprirem o dever geral de recolhimento domiciliário. 

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Os relatos de fintas à lei sucedem-se por outros pontos do país. Mais a Norte, em Cucujães, Oliveira de Azeméis, os militares da GNR que estavam a fazer uma acção de policiamento no passado domingo depararam-se com muito barulho dentro de uma casa. Acabaram por perceber que no interior estavam 30 pessoas num estabelecimento de bebidas “ilegal”. A proprietária, uma mulher de 42 anos, foi constituída arguida e os 30 clientes foram multados. 

Já na terça-feira, em Espinho, 11 pessoas estavam na esplanada de um café, a consumir bebidas alcoólicas e a jogar às cartas, “furando” o recolhimento e o distanciamento social. E, dois dias depois, foi a vez de a GNR interromper uma festa num clube de swing em Alfena, no concelho de Valongo, que permanecia de porta aberta, promovendo o negócio através da página no Facebook.

Após várias denúncias, a GNR montou uma operação que permitiu identificar 23 pessoas, bem como deter o proprietário e o segurança do espaço. Foram também elaborados 42 autos de contra-ordenação às pessoas presentes no local por não estarem a utilizar máscara. 

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Mais policiamento, mais multas

O Governo pediu às forças de segurança que a sua presença se tornasse mais visível na via pública de modo a serem um “factor de dissuasão” de ajuntamentos e incumprimentos. De forma geral, diz o comissário Bruno Branco, as pessoas têm acatado bem as indicações. “Já começa a haver um ou outro mais resistente. Mas genericamente têm obedecido. Esperemos que assim continue.”

Segundo dados do Ministério da Administração Interna (MAI), de 24 de Dezembro a 14 de Janeiro, foram feitas 9393 acções de fiscalização pela PSP e GNR. Foi-lhes também pedido que fossem mais firmes na actuação, com a identificação e notificação de quem está em incumprimento, uma vez que, em caso de reincidência, pode ser aberto um processo-crime por desobediência

E, a julgar pelos dados divulgados na sexta-feira pela PSP e GNR à Lusa, estão a sê-lo. Se, segundo o MAI, de 24 Dezembro a 14 de Janeiro foram detidas oito pessoas, encerrados 59 estabelecimentos e aplicadas 499 coimas, nos últimos dias deste estado de emergência, em que se vive um confinamento geral, esses números são já muito mais expressivos. 

Segundo a GNR, apenas entre os dias 23 e 28 de Janeiro foram detidas seis pessoas por violação do confinamento e emitidos 658 autos de contra-ordenação, dos quais se destacam 307 por violação do recolhimento domiciliário e 73 por falta do uso de máscara em espaços públicos.

Já a PSP aplicou, só durante o fim-de-semana passado, 406 contra-ordenações, entre as quais 97 por falta de uso de máscara, 70 por violação do recolhimento, 49 por incumprimento do distanciamento físico e 37 por consumo de álcool na via pública. Foram detidas 16 pessoas, das quais dez por desobediência ao dever de recolhimento, cinco por desobediência à venda e consumo de bebidas alcoólicas na via pública e uma detenção por desobediência ao confinamento obrigatório por infecção.

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Entregas do outro lado da rua 

“Estamos a ser mais rigorosos e mais firmes na actuação. Só com estas acções é que as pessoas terão consciência de que estão a contribuir negativamente para o combate à pandemia. Quando encontramos uma situação em que é para ser elaborado um auto de contra-ordenação, elaboramos”, nota a alferes Patrícia Manso, do Posto Territorial da GNR da Charneca Caparica. 

Passando da noite para o dia, aqui quer-se que as forças de segurança sejam bem visíveis na rua. Na passada quarta-feira, a Rua dos Pescadores, na Costa de Caparica, tinha pouca gente nas ruas à hora de almoço. Há fila para um supermercado ali próximo e para a Casa da Sorte, porque há muitos que não desistem de tentar a sua. 

Os agentes interpelam duas mulheres que vão juntas a passear. Perguntam-lhes o motivo pela qual andam na rua. Uma delas responde que vai ao estabelecimento de estética que tem ali próximo e que está encerrado já há várias semanas. O motivo não convence os guardas que tratam de pedir a identificação e fazer um auto de contra-ordenação, por não estarem a cumprir o dever de recolhimento domiciliário. “A senhora apresentou-me um motivo que não é válido. Era escusado termos esta abordagem se estivesse no seu domicílio”, atira-lhe um guarda. Hão-de receber a multa em casa, uma vez que ainda não estão operacionais os aparelhos de multibanco para o pagamento da coima na hora. 

“Temos de notificar as pessoas porque senão é sempre a primeira vez”, nota o sargento Saraiva, pragmático na análise: “Este é o nosso trabalho.”

Esta acção à hora de almoço serve também para verificar se nos restaurantes que estão a servir em take-away não estão também a ser vendidas bebidas, e se há ou não consumos à porta — um comportamento que motivou a proibição da venda ao postigo de um simples café.

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Segundo diz a alferes Patrícia Manso, que chefia a acção, por ali não tem sido registado “um grande volume de situações irregulares”. No entanto, há muito quem trate de contornar a lei. Não podendo os estabelecimentos vender bebidas à porta, podem fazer entregas. Mesmo que a bebida vá só até ao outro lado na rua. “As pessoas têm desculpa para tudo. Nós sentimo-nos impotentes em relação a isso porque a lei não diz que não pode ser feito”, atira um guarda.

Infectados a passearem

No rol de funções das forças de segurança está também a vigilância a pessoas que têm de estar em isolamento ou quarentena. “Sempre que seja possível, as patrulhas estão a ir aos locais [de residência]” verificar se estão ou não em casa, diz Patrícia Manso. 

Desde o início da pandemia, este posto já identificou pessoas que, apesar de estarem infectadas e de o saberem, andavam na rua. O sargento Saraiva recorda que deteve uma jovem grávida, de 17 anos, que estava infectada e a circular na rua. “Eu vinha do almoço e à civil, no carro e, de repente, cruzei-me com uma rapariga que tinha a descrição que nos tinham feito. Gritei o nome dela e ela olhou para mim e percebei que era ela. Foi a própria mãe que foi ao posto dizer-nos que ela andava na rua”, recorda.

É uma história semelhante à do homem de 80 anos que, numa manhã da semana passada, saiu da sua casa, em Braga, infectado. Perante a atitude, foi a própria mulher que alertou a GNR, que acabou por ter de parar o autocarro em que o homem seguia. 

Mas não são casos únicos. Na última semana, e um pouco por todo o país, as forças de segurança comunicaram pelo menos cinco casos semelhantes, que configuram violação do dever de confinamento obrigatório e constituem crime de desobediência.

A 21 de Janeiro, a GNR deteve um casal de 59 e 60 anos, de Vila Flor, Bragança, que passeava na rua. No dia seguinte, em Grândola, uma mulher de 28 anos foi denunciada por estar a violar o confinamento obrigatório a que estava sujeita. A GNR foi encontrá-la no local de trabalho, a fazer atendimento ao público.

Ao ver os militares da GNR ali na Rua dos Pescadores, Mário Gonçalves saúda a acção. “Deviam ter feito isto há mais tempo. As pessoas abusaram no final do ano ali na praia. Pareciam tardes de Agosto. E sem máscara. Agora estamos a pagar”, diz o homem de 73 anos, viúvo, que tinha saído para ir buscar o Bacalhau à Gomes de Sá para o almoço. Ele, que mora ali na zona, apressa-se a ir para casa. “O nosso país não aguenta. Temos de ser fiscais de nós próprios.”

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