Com a ajuda da variante, o vírus também chega com mais força aos mais novos

As novas variantes do SARS-CoV-2 estão a mudar as regras do jogo para nosso prejuízo. Infectando mais gente e mais facilmente, há também cada vez mais crianças e jovens doentes. No serviço de infecciologia do Hospital Dona Estefânia as camas estavam todas ocupadas esta semana com miúdos de todas as idades, desde um bebé com 12 dias ao mais velho com 17 anos.

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Estudos mostram que “esta variante não está a infectar mais as crianças do que as pessoas de outros grupos etários” Daniel Rocha

Com as novas variantes altamente transmissíveis a circular e a vacina ainda longe de chegar ao grupo dos mais novos, o vírus aproveitou para conquistar terreno entre as crianças e jovens, algo que não tinha conseguido com sucesso até agora. A nova variante identificada no Reino Unido do SARS-CoV-2 é mais transmissível entre todos, crianças e adultos e a Organização Mundial da Saúde (OMS) já confirmou que os estudos e números mostram que “esta variante não está a infectar mais as crianças do que as pessoas de outros grupos etários”. Mas está agora claramente a afectar mais crianças, que no início da pandemia foram poupadas, e isso já se nota nos hospitais onde chegam os casos graves. 

A meio da semana que passou, na Unidade de Infecciologia do Hospital Dona Estefânia, em Lisboa, o serviço estava cheio e foi preciso ocupar um segundo piso para internamentos. Maria João Brito, pediatra e directora deste serviço, explica que a unidade tem uma capacidade máxima de 12 camas, podendo chegar até 14 se tal for necessário, mas a actual resposta exigiu que fossem abertas mais 16 camas num novo espaço. Esta “ampliação” de urgência já tinha sido uma solução antes, em Abril.

Mas agora, avisa a médica ao PÚBLICO, a situação é bem diferente da que vivemos no ano passado. É diferente porque é muito pior. Agora, os internamentos não estão a ser feitos por precaução como antes, mas para atender casos bastante graves. Nas camas há crianças e jovens de todas as idades, desde o mais novo com 12 dias apenas até ao mais velho com 17 anos, sendo que apenas uma das crianças necessita de cuidados intensivos.

Talvez por hábito profissional de quem lida com crianças, Maria João Brito apresenta a actual situação de forma clara e muito simples. Com a ajuda da pediatra avançamos então para uma explicação que a maior parte das crianças poderá entender. Experimente.

Mais vírus a procurar as fechaduras

“Esta variante afecta todos, não poupa ninguém”, começa por referir a médica. Mas vamos então aos detalhes simplificados: para os vírus se transmitirem é preciso que existam cargas virais elevadas. “Portanto, quanto mais elevada for a carga viral, maior é a minha capacidade de transmitir o vírus.”

Não há, no entanto, nenhum teste que nos diga a carga viral de uma forma directa. Mas há formas de inferir essa informação. Já se sabe que através do número de ciclos que são necessários para detectar o vírus com a técnica de biologia molecular chamada PCR é possível perceber se há por ali muita quantidade de vírus ou não. Quanto mais ciclos forem necessários até detectar o vírus, menos carga viral existe. Ou seja, quanto mais fácil for encontrá-lo (com menos ciclos) mais carga viral existe. A estes ciclos de amplificação os investigadores chamam CT. “Actualmente considera-se que acima de 30 ciclos os doentes já não são muito contagiosos e acima de 40 já não são contagiosos”, diz a especialista.

“O que víamos antigamente é que tínhamos os doentes internados e doentes com muita sintomatologia com CT de 20, 25, por aí. O que acontece com esta nova variante do vírus é que vemos os doentes com CT muito baixos de nove ou dez. Isso significa que a carga viral é quase o dobro do que acontecia com o outro vírus”, continua Maria João Brito. E este efeito acontece tanto em crianças como em adultos que, por causa disso, transmitem muito mais facilmente o vírus.

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Daniel Rocha

Mas afinal o que é diferente nas crianças? Desde o início desta pandemia que se percebeu que as crianças infectadas têm sintomas de covid-19 mais ligeiros do que os adultos. Entre as explicações para esta aparente “protecção” dos mais novos ouve-se falar nas características dos seus sistemas imunitários e também no facto de as crianças terem menos receptores para este vírus. Menos das fechaduras específicas que este vírus usa para entrar e infectar um organismo. Às tais “fechaduras” os cientistas chamam ACE. “Agora o que acontece? Apesar de as crianças terem menos receptores do que os adultos, como com esta variante há muitos mais vírus elas infectam muito mais facilmente. E isso faz ainda com que as crianças com estas cargas virais mais elevadas também possam transmitir o vírus mais facilmente aos seus pares e aos adultos, o que não acontecia com a estirpe anterior sem esta mutação.”

Boom nos mais jovens

Há outra coisa que é diferente entre os mais novos e os adultos e que joga a favor deste coronavírus. As crianças pequenas tocam-se bastante e os jovens nas escolas também andam em grupos, próximos. “O contacto físico é muito mais elevado do que nos adultos e isso faz com que, num grupo onde a doença era até mais difícil de transmitir, tenha tido agora este boom que estamos a ver nestas idades”, remata Maria João Brito.

Assim, conclui a infecciologista, com esta variante do Reino Unido há de facto mais jovens infectados. “Nesta altura temos o serviço cheio”, insiste. E tudo indica que a situação não vai melhorar a curto prazo. “As pessoas não estão a cumprir o confinamento da mesma forma como acontecia em Março. Enquanto não quebrarmos as cadeias de transmissão deste vírus que é altamente contagioso… as pessoas são infectadas e depois dizem ‘ah, mas foi só…’, e basta o foi só”.

Em Portugal os números de crianças e jovens infectados, entre os zero e os 19 anos, ultrapassaram esta semana os 100 mil casos. Sem diferenças significativas entre géneros, a infecção afecta rapazes e raparigas, mas o peso dos casos identificados nota-se mais no grupo dos mais velhos, entre os 10 e 19 anos, que somaram mais de 60 mil casos, enquanto foram detectados quase 40 mil casos entre os zero e os 9 anos. Esta semana, a prevalência das infecções pela nova variante já alcançava os 50% em algumas zonas do país, como na região de Lisboa e Vale do Tejo, e a nível nacional estava já entre os 35% e os 40%.

Os casos de infecções entre os 0 e os 19 anos representam cerca de 14% do total de casos reportados, mas os dados confirmam que não houve muitas alterações nesta “quota” ao longo do tempo ainda que se note um ligeiro aumento. É nos números absolutos de casos confirmados que se nota como a curva dos que têm entre 0 e 19 anos sobe consideravelmente, acompanhando a dos outros grupos etários. Um exemplo: a 1 de Dezembro tivemos 363 novos casos confirmados nesta faixa etária e a 1 de Janeiro eram já 1013 e no passado dia 28 de Janeiro houve, num só dia, mais de 2800 novos casos na população entre os 0 e os 19 anos. 

Ninguém está a salvo

O aparecimento de variantes do coronavírus que têm uma rápida propagação voltou a pôr em destaque o papel das crianças na pandemia da covid-19 e fez regressar o debate sobre fechar ou manter as escolas abertas. No início da pandemia, foram muitos os especialistas que defenderam que, apesar de tudo, as escolas eram lugares seguros. Com estas variantes a circular, o conceito de lugar seguro deixou de existir. Ninguém está a salvo. Já não há lugares seguros, embora se acredite que o perigo vá aumentando com a idade.

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Nelson Garrido

É já evidente para todos que a nova linhagem detectada em Dezembro no Reino Unido é muito mais contagiosa do que a versão do vírus que circulava antes. Mas isso vale para qualquer grupo etário. Um relatório da agência de saúde britânica (PHE) divulgado em Janeiro afasta alguns dos receios sobre a possibilidade desta nova variante ter como alvo específico os mais novos. Uma ideia que a OMS também já desmentiu publicamente referindo que “esta variante não está a infectar mais as crianças do que as pessoas de outros grupos etários”.

Então o que levou inicialmente a soar as campainhas de alarme e fez com que os especialistas atirassem esta hipótese de uma variante com um alvo preferencial apontado aos mais novos? A explicação que tem surgido sobre este aparente equívoco está relacionada com o timing da chegada da variante que coincidiu com uma altura em que, apesar do fecho das lojas e alguns serviços, as escolas no Reino Unido continuaram abertas. O facto de ser transmissível fez com que os estudantes começassem a ser afectados com mais expressão do que nas versões anteriores do vírus e isso levou os cientistas a avançar com a hipótese de serem vítimas preferenciais. No entanto, os dados de vigilância e monitorização da PHE vêm agora demonstrar que a infecção afecta todos os grupos etários.

O estudo revelou ainda que as crianças terão cerca de metade da probabilidade de transmitir a variante a outros, o mesmo que acontecia com o vírus que antes esteve em circulação. Mas a má notícia é que esta variante – que em breve se vai tornar dominante – é cerca de 50% mais contagiosa do que a anterior, tanto para crianças como para adultos. Os estudos realizados até agora têm, no entanto, demonstrado que as vacinas que estão a ser usadas na Europa são eficazes na protecção contra esta variante.

Por outro lado, um estudo epidemiológico da Universidade da Florida (EUA) publicado a 18 de Janeiro na The Lancet Infectious Diseases concluiu que, embora as crianças sejam menos susceptíveis à covid-19, podem ser quase 60% mais susceptíveis do que os adultos com mais de 60 anos de idade de infectar os membros da família expostos. Apesar daquele estudo ter sido realizado com dados de Wuhan e sobre a primeira versão do vírus que circulou no mundo, não parecem existir muitas razões para duvidar que o mesmo acontece com as novas variantes entretanto identificadas.

Entre as muitas variantes conhecidas do vírus – há muitas pequenas mutações que já foram identificadas, mas que não têm importância em termos de transmissão e severidade da doença – há, pelo menos, três que têm preocupado os especialistas: a do Reino Unido, a da África do Sul (que também já foi detectada em Portugal) e a do Brasil.

Mais crianças, mais casos graves

No início desta pandemia, viu-se que as crianças não eram especialmente vulneráveis à covid-19; a maioria das infecções era leve ou mesmo assintomática. Em alguns casos – menos de 0,01%, segundo os estudos publicados e que se referem à estirpe anterior – que os doentes mais novos podem desenvolver uma complicação chamada síndrome inflamatória multissistema.

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Paulo Pimenta

Também isso mudou. Com mais jovens doentes há mais doentes graves que são jovens. “Antigamente tínhamos um e passado um mês outro com a síndrome inflamatória. Agora temos sempre dois, três ou quatro internados em simultâneo”, constata Maria João Brito, acrescentando que agora surgem também em maior número “outras formas raras da doença” como infecções do sistema nervoso central, paralisias dos músculos, infecções em bebés muito pequeninos (sépsis virais), pneumonias em adolescentes ou crianças obesas que são muito semelhantes às que afectam os adultos. A infecciologista pediátrica nota ainda que entre as crianças afectadas não existe o factor de risco de uma patologia existente à partida: “Mais de 90% dos casos são em crianças que são saudáveis.”

Por fim, Maria João Brito faz questão de fazer um apelo e até um desafio. “As pessoas têm de cumprir o confinamento, têm de levar isto a sério. As pessoas que são ainda são cépticas em relação a isto podiam oferecer-se para ajudar nos hospitais e passar lá algum tempo, bastaria algumas horas, e talvez isso mudasse um pouco a maneira de estar das pessoas”, refere. A médica não aceita a desculpa do cansaço das pessoas com as medidas restritivas. “Isso seria maldade, não acredito nisso. As pessoas não tomarem medidas enquanto vêm o número de mortes seria uma maldade. Acho que tem a ver mesmo com as pessoas não levarem isto a sério.”

O escudo das vacinas

E esse “acordar” tem de acontecer o mais rápido possível. Em breve, além da variante do Reino Unido, chegarão outras variantes que também serão altamente contagiosas. E o “escudo” das vacinas não vai oferecer uma protecção tão cedo quanto isso, mesmo que se verifique que até protegem contra estas novas variantes. “É uma corrida contra o tempo”, avisa a especialista. Assim, é preciso diminuir a transmissão e circulação do vírus “ou o próprio vírus vai arranjando mecanismos e adaptando-se melhor e corremos o risco de termos uma mutação que escapa à vacina”.

Alguns especialistas defendem que quando chegar a vez de vacinar os mais novos essa será uma ajuda importante para alcançar a imunidade de grupo. Maria João Brito acha que “não devemos esperar por isso”. “Temos de diminuir a incidência e dar cabo do vírus muito antes de começar a vacinar crianças. Não vai haver tempo para chegar aí.” Sobre a imunidade de grupo, a médica tem também algumas reservas. “Não sei se há. Eu continuo a achar que não há imunidade de grupo para nenhum vírus respiratório”, diz, acrescentando que “qualquer vírus respiratório dá reinfecções e elas estão a acontecer, nomeadamente na zona de Manaus, no Brasil”.

O que podemos esperar é “conseguir uma vacinação universal em larga escala de modo a acabar o vírus ou então o vírus poderá continuar connosco, menos virulento, e nós podíamos continuar a fazer reforços de vacina adaptada à última mutação”. A par deste futuro que ainda ninguém consegue prever também há expectativa de que possa surgir um tratamento eficaz, um antiviral poderoso. “Não podemos perder a esperança, mas temos de ajudar todos.”

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