Antigo espião do KGB diz que Trump é “um activo” da Rússia há 44 anos

Novo livro sobre as relações do ex-Presidente norte-americano com Moscovo revela pormenores da abordagem do KGB a potenciais alvos de recrutamento nos EUA. Segundo os autores, a vaidade e o narcisismo de Trump fizeram dele “um activo perfeito”.

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Assim que regressou da sua primeira visita a Moscovo, em 1987, Trump começou a pôr em causa a política de Reagan Reuters/LEAH MILLIS

Ao longo de quase meio século, desde o seu casamento com a modelo checa Ivana Zelnickova, em 1977, Donald Trump foi incentivado pelos serviços secretos russos a questionar o posicionamento tradicional dos Estados Unidos da América perante os seus aliados, numa campanha que culminou, para agradável surpresa de Moscovo, com a sua eleição como Presidente dos EUA, em 2016.

É este o argumento central de American Kompromat: How the KGB Cultivated Donald Trump, and Related Tales of Sex, Greed, Power, and Treachery, um novo livro sobre as relações de Trump com a União Soviética – e depois com a Rússia –, escrito pelo jornalista norte-americano Craig Unger com a colaboração de Iuri Shvets, um antigo espião russo que foi enviado para Washington na década de 1980, onde trabalhou como correspondente da agência Tass.

Numa entrevista ao jornal britânico The Guardian, Shvets diz que Trump surgiu pela primeira vez nos radares de Moscovo no final da década de 1970, após o seu casamento com Zelnickova (a futura Ivana Trump), em Nova Iorque.

Segundo o antigo espião russo – que vive nos EUA desde o início da década de 1990 e obteve nacionalidade norte-americana –, os serviços secretos da Checoslováquia interessaram-se pelo excêntrico magnata e trabalharam em conjunto com o KGB soviético para influenciarem o pensamento e a acção de Trump desde cedo.

“Havia pessoas que eram recrutadas quando ainda eram estudantes, e que depois subiam a posições importantes. Foi algo desse género que aconteceu com Trump”, disse Iuri Shvets ao jornal britânico.

“Eles fingiram que estavam imensamente impressionados com a personalidade dele, e desejavam que alguém como Trump fosse, um dia, o Presidente dos Estados Unidos. Alimentaram-no com medidas activas e isso acabou por acontecer”, disse o antigo espião do KGB, referindo-se às técnicas de subversão ideológica usadas por Moscovo, ao longo das últimas décadas, para semear divisões entre os seus adversários no Ocidente.

Amizade com Giuliani

No caso de Donald Trump, o antigo espião russo identifica a época do primeiro grande investimento do magnata norte-americano em Manhattan, em 1980, como o momento inicial de uma relação que se mantém até aos dias de hoje.

Nesse ano, Trump abriu o hotel Grand Hyatt e comprou 200 televisões para os quartos dos hóspedes a uma empresa de Manhattan gerida por Semion Kislin, um imigrante russo que, segundo o antigo espião Iuri Shvets, trabalhava como “olheiro” do KGB na identificação de potenciais alvos para manipulação nos EUA.

Nos anos seguintes, Kislin viria a estabelecer uma amizade com o antigo advogado pessoal de Trump, Rudolph Giuliani, de quem foi um dos financiadores das campanhas eleitorais para a presidência da Câmara de Nova Iorque.

Semion Kislin foi um dos três colaboradores de Giuliani – juntamente com Lev Parnas e Igor Fruman, ambos detidos, em Outubro de 2019, sob a acusação de desvio de fundos do estrangeiro para políticos norte-americanos – convocados para deporem nas investigações da Câmara dos Representantes durante o primeiro processo de destituição contra Trump, em 2019.

Na mesma altura, a Al Jazira noticiou que Kislin tentou convencer a antiga embaixadora norte-americana em Kiev, Marie Iovanovitch, a desbloquear milhões de dólares desviados pelo antigo Presidente ucraniano, Viktor Ianukovitch, e congelados pelos EUA.

Marie Iovanovitch foi afastada do cargo em Maio de 2019 e viria a ser uma peça central na denúncia de uma rede paralela, coordenada por Giuliani, para obter e manipular informação prejudicial para o então candidato do Partido Democrata à eleição presidencial de 2020, Joe Biden.

Artigo no Times

Segundo o antigo espião russo Iuri Shvets, o KGB aproveitou a primeira visita de Donald e Ivana Trump a Moscovo e São Petersburgo, em 1987, para lhe sugerirem a ideia de entrar no mundo da política.

“Para o KGB, tratava-se de uma ofensiva de charme”, disse Shvets ao Guardian. “Tinham recolhido muitas informações sobre a personalidade dele e conheciam-no bem. Sabiam que era extremamente vulnerável em termos intelectuais e psicológicos, e que era muito receptivo à lisonja.”

A coincidência entre a visita dos Trump à Rússia, em 1987, e a publicação, por Donald Trump, de um anúncio em três jornais norte-americanos, logo após o seu regresso aos EUA, já tinha sido notada por vários jornalistas e investigadores.

Num texto que ocupou uma página inteira no New York Times, no Washington Post e no Boston Globe, há 34 anos, Trump pôs em causa a estratégia da Administração Reagan para conter a Rússia durante a Guerra Fria, e foi nessa altura que começaram a surgir as suas acusações de que os aliados dos norte-americanos estavam a aproveitar-se dos EUA – na altura, era o Japão, e não a China, que ocupava o lugar cimeiro no seu discurso.

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Donald Trump pagou 95 mil dólares (78 mil euros), em 1987, pela publicação do anúncio em três jornais DR

“Foi algo sem precedentes”, disse Shvets, referindo-se à forma como o anúncio de Trump foi recebido no KGB.

“Eu estou muito bem familiarizado com as medidas activas do KGB nas décadas de 1970 e 1980, e nunca tinha visto nada como aquilo, porque na altura era uma ideia disparatada. Era difícil acreditar que alguém tivesse a coragem de publicar aquilo assinado com o seu próprio nome, mas foi isso que aconteceu”, disse Shvets ao Guardian.

“E, no fim, o tipo tornou-se Presidente dos EUA.”

Pontas soltas

O autor do livro, o jornalista Craig Unger, não tem dúvidas em descrever Donald Trump como “um activo” russo.

“O que aconteceu não foi um plano genial para manipular Trump ao longo de 40 anos e fazer dele Presidente dos Estados Unidos”, disse Unger. “Naquela época, os russos estavam a tentar recrutar dezenas e dezenas de pessoas. Trump era um alvo perfeito por várias razões: a sua vaidade e o seu narcisismo faziam dele um alvo natural para recrutamento. Ele foi sendo cultivado durante mais de 40 anos, até à sua eleição.”

À semelhança de outros jornalistas e investigadores que acompanharam de perto a ascensão de Donald Trump na política mundial, Craig Unger e Iuri Shvets dizem que as investigações do procurador especial Robert Mueller, sobre as suspeitas de conluio com a Rússia, pecaram por não se debruçarem sobre potenciais crimes puníveis nos tribunais comuns.

“Foi isso que nós tentámos corrigir”, disse Shvets. “Eu fiz as minhas investigações e depois juntei-me ao Craig. Achamos que este livro começa onde Mueller terminou.”

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