Precisamos urgentemente de domadores de ódio

O mundo que se conta a partir do que se diz.

“É tão fácil instigar as pessoas a odiar. É muito fácil despertar o racista disposto a odiar que levamos dentro e, pelo contrário, é muito difícil desactivar esses explosivos”. David Grossman, escritor israelita

O botão do ódio

O ódio é sentimento fácil de acirrar. David Grossman fala disso, numa entrevista ao El País a propósito do seu último livro, A Vida Brinca Comigo, que a Dom Quixote editou em Portugal o ano passado. O escritor israelita acredita que “o maior que pode fazer a literatura é redimir a tragédia de cada indivíduo entre a estatística de milhões”, contar a história dessa gente “arrebatada pelas grandes ondas da história” e que acabam por “se sentir naturalmente atraídas” pelas generalizações. “É tão fácil instigar as pessoas a odiar. É muito fácil arrancar o racista disposto a odiar que levamos dentro e, pelo contrário, é muito difícil desactivar esses explosivos”. E Israel é um campo fértil para se sentir essa experiência na pele. Segundo Grossman, em Israel nasce-se de direita, com essa ideia da posse, da desconfiança em relação ao outro, ao estrangeiro. Para se ser de esquerda é preciso superar “essas qualidades negativas”. Grossman não é ingénuo e sabe que “não se trata de idealizar ou embelezar a realidade”, mas, reconhecendo “o má que pode ser a humanidade”, é preciso “acreditar que, se se educam as pessoas, se nos esforçamos para contrariar essa atracção pelo mal, o racismo, algo estaremos a fazer”. No entanto, não se vende como paladino de qualquer luta. Ao escritor não cabe ser portador de mensagens ou de se meter política adentro, a sua obrigação é contar uma boa história, usando o seu talento para a linguagem. E isso já é muito, porque “os grandes sistemas, se querem continuar a corromper, o primeiro que vão manipular é a linguagem”. E se do sapateiro não se espera grande arte no rabecão, menos desculpa terá se cardar as botas: “As pessoas colaboram com a brutalidade: basta-lhes deixar de olhar”.

Os escolhos de escolher

A vida de Prudence Grandall poderia ter sido mais fácil, corresponder aos padrões da sua época, seguir ensinando meninas brancas ricas, como fazia tão bem e tornara a sua escola famosa entre as famílias de posses do estado norte-americano do Connecticut. Mas Prudence Grandall acreditava em muitas coisas, algumas delas desadequadas ao tempo e ao modo. Começou por contratar uma professora negra para ensinar meninas brancas: todos os estados do Norte dos Estados Unidos haviam abolido a escravatura no princípio do século XIX, mas em 1832, mesmo no Connecticut, isso só poderia trazer problemas. Perante a recusa de despedir a professora, apesar de todas as ameaças, os pais retiraram as alunas da academia privada que tanto respeito havia granjeado em Canterbury. E Prudence decidiu, então, ensinar só meninas negras, mas nem isso acalmou os alvos ânimos da cidade. Os brancos, temerosos que a escola pudesse atrair muitos negros de outras paragens, criaram uma lei a proibir o ensino de crianças negras de fora do estado e prenderam Prudence Grandall, enquanto uma multidão invadiu a escola e destruiu tudo o que pôde. A academia só existiu durante três anos, mas a sua fama e a da sua criadora perduram. Este mês saiu em França um livro de BD, com argumento de Wilfrid Lupano e desenhos de Stéphane Fert que conta a história de Prudence: Blanc Autour (Branco em volta), e, como refere Eric Rubert no final do seu artigo sobre o álbum na webzine Unidivers, esta “bela BD é realmente indispensável num momento em que a bandeira confederada tomou posse do Capitólio”.

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Personalidades idóneas

Cumprir a lei e os regulamentos muitas vezes não basta. Uma decisão política pode ser legal e imoral ao mesmo tempo. Fosse diferente o caso e o ministro dos Negócios Estrangeiros de Cabo Verde, Luís Filipe Tavares, não se teria demitido por uma decisão que, como disse o primeiro-ministro Ulisses Correia e Silva esta semana no Parlamento, cumpriu os trâmites que tinha de cumprir. O certo é que a nomeação como cônsul honorário de Cabo Verde na Florida de Caesar DePaço, empresário luso-norte-americano com obsessões securitárias e, segundo uma reportagem da SIC, financiador do Chega, mostrou-se um engulho que, por mais que o chefe do Governo cabo-verdiano tenha tentado desvalorizar na sua explicação aos deputados, macula o partido no poder que tem de enfrentar eleições legislativas e presidenciais este ano. Ao mesmo tempo que afirmava não ter o Governo “polícia política para investigar as preferências político-partidárias das pessoas”, o primeiro-ministro garantia que, “pelo seu perfil”, Caesar DePaço, César do Paço de nome de baptismo, tem “personalidade idónea e reconhecido mérito”. A população de Cabo Verde é de cerca de 550 mil habitantes e mais de 800 mil cabo-verdianos e seus descendentes vivem na diáspora, desses, 250 mil nos Estados Unidos, segundo números das Nações Unidas. De certeza que não havia um deles que “pelo seu perfil” pudesse ter também uma “personalidade idónea” e de “reconhecido mérito” que não estivesse associado a um partido de discurso racista e xenófobo

Que importam os factos

Numa discussão em que um lado recorre a factos para defender argumentos e o outro fala da sua experiência pessoal, as pessoas tendem a acreditar mais na experiência. Esta é a conclusão a que chega uma pesquisa científica publicada esta semana no Proceedings of the National Academy of Sciences, o boletim oficial da Academia das Ciências dos Estados Unidos. “As pessoas acreditam que os factos são essenciais para ganhar o respeito dos adversários políticos, mas a nossa investigação mostra que essa crença está errada”, refere o artigo científico de quatro académicos de duas universidades norte-americanas e uma alemã. Para os autores, as conclusões a que chegaram questionam a forma como “a ciência e a sociedade devem entender a natureza da verdade na era das fake news”, confirmando aquilo que cada vez mais intuímos: “Nos desentendimentos morais e políticos, as pessoas comuns tratam as experiências subjectivas como mais verdadeiras que os factos objectivos”. Num tempo de bombardeamento informativo, onde o indivíduo está subjugado à velocidade de um quotidiano onde míngua o espaço para a reflexão, as experiências individuais parecem transformar-se numa espécie de terreno sólido onde fincar os pés e evitar o afundamento na gigantesca maré de factos que nos ameaçam. E o “valor” dessas experiências aumenta com o grau de dor, sofrimento ou perda pessoal que envolveram. Depois de uma atribulada eleição e uma tumultuosa transição, com quatro anos de acirrada divisão entre democratas e republicanos cultivada por Donald Trump, Joe Biden chegou à Casa Branca com o discurso da união, de construir pontes, da recuperação do consenso para fazer avançar a América. E se os factos não constroem pontes, terá sido para partilhar essa “experiência subjectiva” que, antes de viajar para Washington, Biden chorou numa homenagem ao filho morto de cancro em 2015?

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