Voto digital e o que realmente deveria estar em causa

Imagina que a meio da pandemia terias de te deslocar de Monção a Vila Real de Santo António para votar, regressando ao final do dia a Monção: será que o farias? Se a resposta é sim, é idêntica à minha: fiz o mesmo nos Países Baixos para ir votar.

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Daniel Rocha

Vivendo fora de Portugal, não deixa de ser irónico e marcante que Marcelo Rebelo de Sousa toque no ponto das comunidades estrangeiras do país. Felizmente, e residindo nos Países Baixos, bastou-me apanhar um comboio e realizar o meu direito de voto em Haia, mas o mesmo não se pode dizer de milhares de portugueses residentes noutros países onde as condições nacionais eram adversas e vetaram o seu direito de voto (eu também ficaria irritadíssimo se esse direito me fosse negado). 

Em períodos eleitorais, sejam eles quais forem, existe sempre um forte interesse em defender e relembrar a existência dos “migrados”, estes que dependendo do ano e da Comissão Nacional de Eleições vêem as condições serem alteradas de eleição em eleição. Não está na altura de se fazer um debate sério sobre estes eleitores? Perceba-se a maioria dos eleitores é forçada a deslocar-se à embaixada portuguesa, podendo em alguns casos ter de atravessar por inteiro um país para poder exercer um simples direito de voto.

Este ano houve uma maior facilidade para votar e os cadernos eleitorais foram preenchidos automaticamente para mais de 1 milhão de residentes no estrangeiro (que viram a sua situação simplificada para efeitos de voto). O voto antecipado permitiu uma maior liberdade de voto (quase que inédita, naquilo que a minha mente me permite recordar), nunca esta cláusula apresentou tamanho peso na votação global. Será possível de vez analisar de fundo o “sacrifício cívico” que estas comunidades representam?

Bem percebo que as comunidades decidiram abandonar o país de origem e a representação legislativa e judicial internacional não pode, nem deve ser, idêntica à nacional, mas, a título de exemplo, imagina que a meio da pandemia terias de te deslocar de Monção a Vila Real de Santo António para votar, regressando ao final do dia a Monção (admitindo, claro, que tens interesse em retornar ao local de residência, vontade essa reforçada pela obrigatoriedade imposta pela pandemia): será que o farias? Se a resposta é sim, é idêntica à minha: fiz o mesmo nos Países Baixos para ir votar em plena pandemia.

Numa segunda nota, em plena pandemia muito ouvimos falar da digitalização dos serviços, pois bem, para quando uma discussão séria sobre o voto digital seja a nível nacional, seja a nível internacional? Bem percebo que somos receosos do que daí possa vir, desde potenciais falhas de segurança, a manipulação de resultados, bem como aquilo que a Big Data possa ganhar, caso os mesmos sejam absorvidos pela mesma... A solução não é fácil, no entanto, a Europa tem aprovado legislação de protecção de dados e parece focada na digitalização. Logo, porque não aproveitar a presidência portuguesa do Conselho da União Europeia para expor o tópico, por muito complexo e sensível que o mesmo seja? Não será altura de, pelo menos, pensar numa futura possibilidade idêntica para o voto?

Claro que com isto não quero, de todo, excluir a possibilidade de voto presencial, até porque percebo que existe toda uma geração “por digitalizar” em Portugal, se bem que neste contexto de pandemia talvez tenhamos a oportunidade perfeita para reforçar e pensar nessa mesma transição e aproveitar os ventos “digitais” europeus para competir e reforçar um sector dominado pelos mercados asiático e americano. Acresce ainda a este apelo do voto digital a crescente incerteza em que vivemos.

Em Portugal, votaram sensivelmente 4 milhões de portugueses que num período delicado fizeram o esforço de se deslocar ao local de voto. Não querendo destoar um tom pessimista, vive-se na Europa um risco considerado com o aparecimento de novas estirpes do vírus. Será que estaremos dispostos a viver umas eleições autárquicas e futuramente legislativas sem considerar estes riscos? É que neste momento é totalmente incerto os custos reais destas mutações e os seus custos reais seja a nível económico, seja a nível social.

Resta-me apenas fazer o apelo como cidadão interessado que todo o discurso gerado em torno da abstenção não caia por terra, pois uma coisa é as pessoas terem possibilidade de votar e decidirem não o fazer, outra coisa é as pessoas quererem votar e não o poderem fazer. É que num período em que se discute e dá tanto tempo de antena a radicalismos, convém provar que os valores democráticos de voto estão salvaguardados. Pois apenas com bases democráticas e agregadoras de debate político poderemos fazer democracia, e nunca na exclusão social, no ataque fácil e na polarização de duas grandes bancadas.

Em França, Macron criou assembleias de cidadãos respeitando a diversidade social para ouvir pontos de vista distintos e especialistas em várias áreas e sectores, deixando o papel aos cidadãos de discutir e apresentar uma solução conjunta sobre tópicos complexos e sobre os quais é difícil tomar uma decisão final e consensual. Talvez seja esse o maior desafio de Marcelo Rebelo de Sousa: garantir pluralidade, ter uma estratégia conjunta política a longo prazo, criar união, lembrando que nesta fase discursos separatistas apenas ganharão votos de eleitores, mas custarão a Portugal uma oportunidade única e histórica

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