A Irlanda e o inferno fiscal português

Carlos Guimarães Pinto responde a Bárbara Reis a propósito de um autocolante sobre o sucesso económico da Irlanda, de que o próprio é autor.

Li com atenção o artigo da jornalista Bárbara Reis, que mencionou um “autocolante” que recebeu por WhatsApp com uma comparação entre Portugal e a Irlanda. Pela descrição, esse autocolante refere-se a um quadro comparativo publicado pela Iniciativa Liberal a 13 de Dezembro de 2018 que depois circulou sem a respectiva identificação. Tendo sido eu a elaborá-lo e a escolher os dados que lá foram incluídos, é da minha inteira responsabilidade qualquer erro ou alegada desinformação apontada por Bárbara Reis. Em resposta a essas notas, ficam os seguintes esclarecimentos:

– É verdade, como escreve Bárbara Reis, que Portugal está hoje no 56.º lugar do ranking de Liberdade Económica, enquanto que no quadro aparece 72.º. Como indicado acima, o quadro foi feito em 2018, pelo que não poderia usar os dados de 2020. Em 2018 era essa a posição, como pode ser facilmente verificado no site da entidade que faz o índice.

– É verdade que a taxa de IRC em Portugal é de 21,5%. No entanto, para se compararem impostos sobre lucros, devem incluir-se todas as taxas adicionais que recaem sobre esses lucros incluindo as derramas. O valor de 31,5% que aparece no quadro é o mesmo que a OCDE usa para as suas comparações. Isto é facilmente verificável no site da OCDE. Como escreve Bárbara Reis, esta taxa é paga por uma ínfima minoria de empresas que têm mais de 1,5 milhões de lucro. No entanto, é esta ínfima minoria que paga grande parte do valor cobrado em impostos sobre lucros em Portugal. A comparação também faz sentido assim porque Portugal e Irlanda não competem pela atracção de cabeleireiros, cafés ou outras microempresas, competem pela atracção de grandes empresas multinacionais, precisamente aquelas que estão sujeitas à taxa de 31,5% em Portugal e 12,5% na Irlanda. São essas também as empresas mais produtivas, que pagam salários mais altos, que inovam mais e que mais poderiam contribuir para o crescimento económico, mas este assunto daria um artigo por si só. Podia estar naquele quadro o valor de 21,5% que ainda assim seria bastante superior ao da Irlanda, mas isso não faria justiça à falta de competitividade fiscal de Portugal em relação à Irlanda no momento de atrair investimento.

– Sobre a comparação do crescimento do PIB real, escreve Bárbara Reis que o número é enganador porque em 2016 terá havido um crescimento virtual de 26,3%. Houve de facto um crescimento anormal na Irlanda derivado das inversões de algumas multinacionais americanas. Mas essa anormalidade foi em 2015 e não em 2016. Em 2016, o crescimento real do PIB foi de uns normais 3,7% (Fonte: Pordata). Precisamente para não enganar o leitor é que no quadro o ponto de partida é 2016 e não 2015. Seria enganador de facto incluir esse ano, mas não foi incluído. Sobram as dúvidas, legítimas, sobre o crescimento do PIB da Irlanda mesmo em anos normais. É comum no caso da Irlanda olhar-se para indicadores além do PIB, nomeadamente o PNB que corrige para o efeito dos lucros das multinacionais que não ficam no país. Se fosse esse o caso, naquele período Portugal cresceu 8,6% e a Irlanda 16,4%.

– Tem razão, no entanto, Bárbara Reis quando aponta que a comparação salarial deve ser feita com a paridade de poderes de compra. Se ajustarmos o salário médio irlandês pelo poder de compra para ficar comparável com o português, teríamos que o salário médio em 2017 na Irlanda seria 1797 (e não 2479 como está no quadro) euros versus os 925 euros em Portugal (ajustes retirados da OCDE). Ainda assim, uma diferença substancial, mas fica feita a correcção devida.

– Da mesma forma, quando comparando as taxas de IRC que recaem sobre os salários, deveria ter sido ajustado o salário irlandês para cima. Um salário de 1500 euros em Portugal não corresponde em termos de poder de compra a um salário de 1500 euros na Irlanda, mas sim a um salário de 2069 euros. Felizmente neste caso não teria impacto na análise, porque a taxa de IRS para esse nível salarial na Irlanda continuaria igual: 20%.

– Escreve Bárbara Reis também que a redução do IRS não é uma solução mágica para o crescimento económico. Tem razão. Seria preciso bem mais que isso. Já não tem razão quando aponta casos de taxas máximas elevadas em França, EUA ou Dinamarca sem referir a que rendimentos se referem. Porque mesmo ajustando pelo poder de compra é diferente ter uma taxa de IRS de 45% que se aplica a rendimentos a partir de 36 mil euros por ano, como em Portugal, a aplicar-se a rendimentos acima de 158 mil euros, como em França. A taxa máxima nos EUA é elevada, mas só se aplica a rendimentos superiores a 400 mil euros. A Irlanda é o único caso onde o patamar de aplicação da taxa máxima é semelhante ao português, mas a taxa máxima é mais baixa e a taxa aplicada ao rendimento antes desse valor é de apenas 20%. Mais importante do que isso, mesmo que as comparações de taxas máximas fossem para os mesmos patamares de rendimento, todos os países mencionados são muito mais desenvolvidos do que Portugal e é diferente ter impostos altos numa economia já desenvolvida e numa economia que se arrasta na cauda da Zona Euro. Eu consigo apontar vários exemplos de países numa situação semelhante à portuguesa que conseguiram dar o salto graças a uma política de competitividade fiscal para atrair investimento e reter talento (Irlanda, Estónia, Lituânia, Eslováquia, Eslovénia, República Checa...). Não conheço nenhum que o tenha feito com a estratégia oposta.

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