Puro teatro*

Agora Diogo Infante já não sobe ao palco, aguardando melhores dias para os seus projectos. Mas subirá, espero bem, até ao encenador e ao actor, o tributo que aqui lhes presto. Como um dever cívico.

As dívidas de gratidão pagam-se com ainda maior honra. É o que venho fazer hoje, atrevendo-me a desviar o leitor do (deplorável) circuito eleitoral e permitindo-me chamar-lhe a atenção para outro circuito bem mais luminoso que é o da criatividade. Da inspiração. Da intuição. Do sopro que nunca se sabe quando sopra mas que, aqui, quis soprar.

Vivendo fora de Lisboa há dez meses, há dez meses que não ia ao teatro. E como pode fazer falta esse inconfundível gesto de passar a porta de um teatro no frio da noite, o bruá festivo que sobrevoa o hall de entrada, a expectativa quase ansiosa com que nos sentamos na plateia. A íntima – talvez mesmo intransponível, de tão pessoal – convicção de estar ali. Uma espécie de recompensa enviada por algum Deus sem remetente. Foi tudo isto que, após longa ausência, revivi com jubilo uma noite destas, quem gosta de teatro perceberá bem o que escrevo. E tratando-se de Diogo Infante e do “seu” Trindade, o júbilo era porventura mais vivo. Deve haver poucos actores, dentro ou fora de portas, que se possam reclamar de talento assim.

Sucede, porém, que desta vez – a vez de Ricardo III. e tanto faz que o veneno do vírus o tenha escorraçado para fora de cena, porque um dia voltará – desta vez, sim: é mesmo preciso pagar a dívida da gratidão, pelo arrojo e o assombro que nos esperava em cima do palco, agradecendo – sim, sim – um e outro.

Nos idos de 2019 – santo Deus, foi há um século? –, lembro-me bem do entusiasmo do próprio Diogo Infante quando em conversa na sua pequena sala no primeiro andar do teatro me anunciou a programação de Ricardo III. E da vibração com que se antecipava como protagonista, evocava Shakespeare e me descrevia a sua inabalável confiança no encenador Marco Medeiros. Ouvir o actor era tactear o sortilégio do teatro, voando sobre as suas palavras. Voltei a reencontrar essa espécie de mistério quase dois anos depois, em cima do palco do Trindade, com Diogo Infante já Ricardo III, em carne e osso. Gesticulando por entre a sua própria loucura, seco de fealdade, vomitando ódio, embriagado pela sede de vingança, lambendo o sangue das vítimas mas nunca se saciando delas. Osso e carne corroídos pela implacabilidade do mal.

Um espectáculo assente sobre a cultura e o saber de Maria João da Rocha Afonso, tradutora e dramaturgista desta versão quase alucinante (deviam vendê-la nas livrarias). Pouco mais de uma hora e meia que agarra e condensa o âmago do que a atemporalidade de Shakespeare nos deixou (Maria João era neta da escritora Maria Lamas e morreu por doença sem poder assistir à estreia do seu extraordinário trabalho); depois houve Marco Medeiros e o fulgor impetuoso com que encenou essa atemporalidade; e, finalmente, Diogo Infante num papel que as plateias não esquecerão. Perante tal sintonia, suspeita-se que todas as fadas se debruçaram sobre este terceto concedendo-lhes, em abundância, o dom da inspiração e o poder do acerto.

E tudo é tão actual...: “Está lá a ambição, a antidemocracia, a corrupção, que ultrapassam épocas, modas, guerras, pandemias. A imortal condição humana, ou a universalidade de Shakespeare”, confirma Marco Meneses: “A inteligência inigualável da Maria João da Rocha Afonso teve a capacidade de adaptar Shakespeare para algo que nos é tão próximo e tanto envolve o público com o texto. Foi essa universalidade que nós quisemos partilhar no nosso trabalho”, diz-me o encenador quando o procurei um destes dias (gosto de perguntar e depois contar).

Uma universalidade que nos reconduz em linha recta à condição humana para poder compreender tudo: “Vejo muitos Ricardos vivos e activos. Usei o III de Inglaterra para nos alertar de finais menos felizes: ‘O que está feito, não pode ser desfeito.’ Ainda podemos impedir que o façam”, desafia o encenador. E desafia mais, quando tento decifrar a assinatura que quis deixar num Ricardo III moldado por si: “Pretendo relembrar que numa sociedade temos os justos, os sensatos, os dignos, os democratas, mas também temos todos os opostos. Eles existem e não têm a sensatez nem sensibilidade para julgar o que é menos digno, menos prejudicial. Não têm filtro. Permitimos-lhes que actuem e que tenham voz. Somos cúmplices do crime. Achamo-nos activistas e opositores, mas apenas no nosso sofá, onde nada acontece. O praguejar, assistir e comentar o crime que se pratica, torna-nos testemunhas e cúmplices. Depois resta-nos lamentar o sucedido. Um país não se governa numa mesa de café.”

Um espectáculo com tamanho poder de convocatória e uma harmonia cénica onde desaguam, por entre o arrepio e a vertigem, a impiedade, a crueldade, a ferocidade de um homem que um dia reinou, exigia pois registo e notícia: como, por exemplo, a de saber como é que, apesar da sólida sintonia entre o terceto “fundador”, se ergueu esta empreitada? Foi uma caminhada pontuada pela dúvida e a hesitação, o avanço e o recuo? Ou um impulso, uma premonição, um golpe de asa?

Voltei a perguntar. “Quando inicio um trabalho, tento perceber o porquê e a razão de o fazer. Depois de algumas respostas surge a grande dúvida: o como fazê-lo?” “A construção de um espectáculo é algo que está presente 20 horas do meu dia. Surgem por isso muitas ideias, umas menos boas, outras idiotas, algumas interessantes e aqui é fundamental o trabalho de equipa. Alguém que ouça essas ideias e questione. O Diogo Infante foi fundamental para mim neste processo. O trabalho era conjunto, partilhamos sempre tudo, o objectivo era comum. E a Maria João era “a advogada do Diabo”, como ela própria dizia. Aprendi com ela a não reagir por impulso, ouvindo os actores, os criativos, os técnicos, a produção. Este Ricardo III é de toda esta equipa”.

Será Diogo Infante que leva a peça às costas, no final nem sequer se distancia dos colegas no agradecimento aos aplausos que crepitam da sala. Espírito de grupo (e felicite-se o grupo!).

Foi nesse registo de equipa que Diogo trabalhou: a “experiência não chega quando se quer crescer e arriscar como eu quero”. Risco tão esgotante quanto violento: “Doía-me o corpo e trazia comigo um amargo de boca, misto de sangue e suor, que me pesava durante o dia e se libertava apenas quando voltava a subir ao palco, travestido naquela pele estranha onde não me reconhecia.”

Agora já não sobe ao palco, aguardando melhores dias para os seus projectos. Mas subirá, espero bem, até ao encenador e ao actor, o tributo que lhes presto. Como um dever cívico. Dizendo-lhes primeiro que nos tempos aflitos que vivemos desde Março de 2020 se registou a não desistência deles, continuando a acreditar numa produção desta envergadura; e depois que quando, de uma noite para a outra, a pandemia lhes decepou os “dias seguintes” que se anunciavam radiosos, a memória de Ricardo III ficará aqui guardada. É uma espécie de troca entre o que eles os dois me deram no palco e os breves instantes de gratidão que lhes posso oferecer numa página de jornal. Palco possível, à falta de outros palcos.

*O título desta crónica foi intencionalmente “roubado” à secção de teatro do suplemento “Babelia” do El País

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