Novo portal do Google Arts & Culture mostra como Mossul resistiu ao Daesh e continua a viver

Passeios virtuais e modelos 3D de mesquitas e de outros monumentos, artistas contemporâneos que voltam a falar depois de três anos de ocupação. E testemunhos de quem sobreviveu ao terror para descobrir que a cidade que conhecia já não existe. A partir desta quinta-feira, um acervo para descobrir online.

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A Grande Mesquita de Al-Nuri, com mais de 800 anos, ficou neste estado OMAR ALHAYALI/LUSA

Foi a 10 de Julho de 2017 que o governo de Bagdad declarou formalmente que reconquistara Mossul, a terceira maior cidade do Iraque e bastião do Daesh desde 2014. Três anos de ocupação pelos jihadistas do Estado Islâmico (nome que o Daesh adoptou quando declarou um “califado”, precisamente em Mossul) haviam deixado a cidade em escombros e os seus habitantes – os que restaram dos dois milhões iniciais – doentes, famintos, exaustos. 

Os últimos nove meses de combates entre os extremistas islâmicos e as tropas leais a Bagdad, com o apoio de uma coligação internacional liderada pelos Estados Unidos e pelos seus aviões, foram particularmente intensos e deixaram a população encurralada em vários pontos da cidade, com acesso muito limitado a água, alimentos e cuidados médicos. 

O património, por sua vez, encontrava-se num estado catastróficoa Grande Mesquita de Al-Nuri, com mais de 800 anos e um minarete muito particular, fora destruída, assim como a biblioteca central da universidade, uma das melhores do Médio Oriente; o principal museu da cidade fora invadido e centenas dos seus artefactos haviam sido partidos ou desviados para financiar os esforços de guerra. Mas o mais importante era debelar a crise humanitária, salvar as pessoas antes de pensar em preservar qualquer outra coisa. 

Os relatos dos primeiros jornalistas a entrar em Mossul com as tropas iraquianas – profissionais ao serviço de televisões como a Al-Jazeera, com sede no Qatar, ou diários de referência como o norte-americano The New York Times e o francês Le Monde – davam conta de um centro histórico praticamente reduzido a pó. 

Foi neste núcleo na margem ocidental do rio Tigre que se entrincheiraram os últimos resistentes do Daesh, prolongando a agonia dos moradores, que viviam há meses aterrorizados com a possibilidade de virem a ser vítimas de um sniper, de um carro armadilhado ou de um bombista suicida. 

Nas primeiras semanas após a reconquista, enquanto habitantes e militares recolhiam os cadáveres que tinham ficado espalhados pelas ruas e a Organização das Nações Unidas (ONU) avaliava a extensão dos danos e fazia contas a quanto seria necessário só para devolver a Mossul as infra-estruturas básicas (mil milhões de dólares foi o primeiro número a que chegou), havia já quem arregaçasse as mangas para restituir a alguns dos monumentos da cidade, sobretudo aos locais de culto, parte da dignidade perdida. Outros procuraram, através da arte, documentar os meses de agonia que tinham vivido, tornar evidente as marcas terríveis que o conflito deixou nas pedras e nas pessoas, mostrar como era possível renascer, apesar de tudo.

Foi desta capacidade de resistência, deste esforço colectivo que se multiplicou em exposições, concertos, campanhas internacionais para a angariação de livros e de outros apoios à reconstrução que a rádio Al-Ghad quis fazer eco quando se associou ao Google Arts & Culture para criar A Arte e a Alma de Mossul, um portal online que estará disponível a partir desta quinta-feira e que reúne entrevistas áudio e vídeo, passeios virtuais e reconstruções de monumentos destruídos com recurso a modelos 3D. 

No novo portal, explica Mohammed Al-Hashimie, o director desta rádio pioneira da reconstrução, parte-se de uma exposição de arte contemporânea – Return to Mosul – para mostrar como “uma cidade pode sofrer, mas nunca morre”. 

Uma rádio singular

Criada durante a ocupação do Daesh, em 2015, e com uma forte ligação à comunidade, a rádio Al-Ghad continua a acompanhar os esforços das equipas que no terreno procuram documentar e salvar o que resta dos sítios arqueológicos destruídos, dos monumentos deitados por terra, isto sem deixar de dar voz aos habitantes de Mossul, artistas ou não, que queiram contar as suas histórias de sobrevivência. 

Return to Mosul, a exposição, abre o portal, mostrando as obras de vários artistas silenciados entre 2014 e 2017, obras que expõem, diz Mohammed Al-Hashimie, “as sucessivas tentativas para apagar esta cidade da memória da história”, e os séculos de civilização que nela se cruzam.

Dividido em grandes blocos que, depois, se desdobram em secções mais especializadas, o novo portal do Google Arts & Culture permite explorar a cidade recriada em pinturas várias, mas também em passeios virtuais, e leva-nos a descobrir as heranças islâmica, cristã e judaica nas casas fotografadas por Moyasser Nasser, umas ainda habitadas, outras deixadas para trás em bairros hoje desertos. 

Pelo meio ficamos a saber como um jovem blogger (o autor do blogue Mosul Eye) mobilizou dezenas de pessoas que acabaram por salvar mais de 30 mil livros dos escombros da biblioteca da universidade, e vemos como a tecnologia pode ajudar a reinscrever na memória o curioso minarete da Grande Mesquita de Al-Nuri, famoso por estar inclinado, como a Torre de Pisa. 

Passarão ainda muitos anos até que Mossul se livre dos escombros, e muitos dos seus monumentos poderão estar para sempre perdidos, mas a sua história, garante Mohammed Al-Hashimie, continuará a ser contada. E falará de mais uma guerra, mas também de como os seus habitantes não deixaram que a velha cidade morresse.

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