A colquicina é o próximo tratamento para a covid-19? Ou uma falsa esperança?

Um comunicado de imprensa de um instituto canadiano diz que este fármaco muito antigo, usada para tratar a gota, dá excelentes resultados. Mas o anúncio está a gerar polémica até no Canadá. Exigem-se provas concretas.

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Um medicamento que pudesse ser administrado oralmente seria um grande progresso WILLY KURNIAWAN/Reuters

O anti-inflamatório colquicina pode ser útil para tratar pessoas recentemente infectadas com o novo coronavírus? Um comunicado de imprensa de um instituto canadiano de Montreal sobre resultados intermédios de um vasto ensaio clínico sugere-o, ainda que o estudo não tenha sido ainda publicado. E resultados publicados no Verão num pequeno ensaio clínico na Grécia, na revista científica de acesso livre mas com revisão pelos pares JAMA Network Open, levou esta semana especialistas gregos a recomendar que este medicamento para a gota seja usado para tratar doentes de covid-19, noticiou o jornal grego Ekathimerini.

Será este o próximo medicamento no qual apostar para tratar doentes de covid-19? Convém encará-lo com prudência. É esse o conselho da Ordem dos Médicos do Quebeque (a região do Canadá a que pertence Montreal), do Ministério da Saúde e de vários cientistas canadianos, face à pretensão do comunicado de imprensa do Instituto de Cardiologia de Montreal que apresenta a colquicina como “o único medicamento tomado oralmente para tratar pacientes não hospitalizados com covid-19”.

“Os resultados parecem bons… Há motivos para acreditar que haverá algum efeito, mas há ainda tanto que ainda não se sabe”, aconselhou Emily McDonald, cientista do Instituto de Investigação do Centro Médico da Universidade McGill, também em Montreal, citada pela televisão CTV News. 

O comunicado de imprensa avançava alguns números do ensaio clínico COLCORONA  que está a decorrer em vários países (Espanha, África Sul e Brasil, além do Canadá e da Grécia) para demonstrar a eficácia da colquicina. São ainda resultados preliminares, que não estão ainda publicados e submetidos a uma avaliação crítica. Nesta fase, estão apenas a ser publicitados da forma mais favorável possível.

O que diz o comunicado de imprensa é que o ensaio clínico mostra que este anti-inflamatório “reduz em 21% os riscos de morte ou hospitalizações”, se se comparar com doentes de covid-19 que apenas tomaram um placebo (um falso medicamento, usado apenas para efeitos de comparação). Nos pacientes com diagnóstico comprovado de covid-19, acrescenta o comunicado, a colquicina reduziu as hospitalizações em 25%, a necessidade de ventilação mecânica em 50% e as mortes em 44%.

Estes resultados foram obtidos com uma população de 4488 pacientes, nos quais 4159 tiveram diagnóstico comprovado da infecção pelo novo coronavírus com um teste de PCR, e a equipa de Jean-Claude Tardif, o principal investigador do estudo, considera que esta droga, derivada das sementes de açafrão selvagem, “é eficaz na prevenção do fenómeno da tempestade de citocinas e na redução das complicações associadas à covid-19”. Neste fenómeno, o sistema imunitário ataca as células do próprio organismo juntamente com o vírus, o que pode levar à falência de múltiplos órgãos e à morte.

Mas afirmações extraordinárias, como as feitas neste comunicado de imprensa, exigem provas igualmente extraordinárias, e isso está a faltar. Não é claro no texto do comunicado se estes resultados são estatisticamente significativos ou não. “O texto diz que ‘se aproximaram de ter significado estatístico’, mas não temos certeza”, comentou Emily McDonald. “Se se divulga um número deve dar-se o valor mais alto e mais baixo à sua volta – o intervalo de confiança, para que os cientistas possam interpretá-los”, comentou.

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A desconfiança tem a ver com falsas esperanças como a da hidroxicloroquina George Frey/REUTERS

Por ora, a Ordem dos Médicos do Quebeque e a Ordem dos Farmacêuticos do Quebeque aconselharam os seus membros a não usarem colquicina – em reacção a uma frase no comunicado de imprensa, onde se dizia que deveria ser usada “logo que o diagnóstico da covid-19 for confirmado por um teste de PCR”.

Mas isto não é uma condenação à partida deste novo tratamento. Aliás, seria uma excelente notícia se se confirmasse a existência de um comprimido para a covid-19 que se pudesse tomar oralmente. “Seria muito bem-vinda, porque as únicas terapias equivalentes que agora existem são as de anticorpos monoclonais, que têm de ser administradas de forma intravenosa, e existem em quantidades reduzidas”, comentou à publicação especializada STAT Eric Topol, do Instituto de Investigação Scripps, que tem sido um grande disseminador de informação científica sobre a covid-19.

A desconfiança está na forma como está a ser a divulgada – e com o facto de já ter havido várias falsas esperanças propaladas aos quatro ventos, como a hidroxicloroquina, que se tornou uma questão de luta política, sobretudo nos Estados Unidos, Brasil e França, e que a Direcção-Geral da Saúde portuguesa recomendou em Maio que deixasse de ser utilizado para tratar a covid-19. Ou ainda as sérias dúvidas sobre a eficácia do antiviral remdesivir, desaconselhado pela Organização Mundial da Saúde. 

O anti-inflamatório dexamatesona, um medicamento antigo, é que se tem mantido em uso, mas é recomendado apenas para os casos mais graves de covid-19.

Na Grécia, no entanto, e Chipre logo a seguir, a divulgação destes resultados no Canadá parece ter dado novo impulso esta semana para que fosse recomendada a utilização desta droga muito antiga – é conhecida pelo menos há 3500 anos, pois é mencionada no papiro Ebers, que descreve 80 doenças e o seu tratamento, resumindo o conhecimento médico do tempo do faraó Amenófis I  para tratar doentes de covid-19. A recomendação foi feita com base num ensaio clínico mais pequeno, cujos resultados foram publicados em Junho de 2020, na JAMA Network Open. 

O medicamento passará a ser prescrito para algumas categorias de doentes de covid-19, anunciou o presidente da Sociedade de Infecciologia Helénica, Panagiotis Gargalianos, citado pelo Ekathimerini.

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