“Não parei porque não estou morta, mas os meus amigos estão”

Kholoud Helmi tornou-se jornalista porque era preciso quem contasse a “coragem dos sírios”. Acabou por fugir do país e hoje vive na Turquia.

Foto
Helmi em 2015, quando recebeu o Prémio Anna Politkovskaya atribuído todos os anos pela organização Reach All Women in War

Estar numa manifestação era incrível. Descobrir que podíamos falar, contar, gritar, pedir coisas que antes nem sabia que tinha direito a querer, como liberdade. A primeira vez senti que flutuava, já não andava, era como se voasse.

Não havia ninguém para contar o que estava a acontecer, o regime não deixava entrar jornalistas estrangeiros. Éramos novos e não tínhamos experiência, o único jornalista a sério entre nós era Nabil Shurbaji, de resto éramos todos amadores. Mas começámos a trabalhar no Enad Baladi no fim de 2011. Imprimíamos nós próprios as cópias, tudo clandestinamente. Cheguei a ter pilhas de jornais em casa a tentar que os meus pais não percebessem o que se passava.

Pelo menos 75% dos fundadores eram mulheres. Tínhamos um papel fundamental porque durante algum tempo as forças de segurança não revistavam as mulheres nos checkpoints. E eu levava centenas de cópias escondidas até Damasco, para depois serem distribuídas lá.

A verdade é que a maior parte das vezes estava aterrorizada. Contactava pessoas, escrevia as notícias, mas sabia que um dia iam entrar pela minha casa dentro, tinha medo que matassem os meus pais. Em Maio de 2012 entraram mesmo e prenderam o meu irmão. Três meses depois, o regime cercou Darayya. Fomos bombardeados, morreram mais de mil pessoas. Quando o Exército se foi embora deixou tudo a arder.

Parámos de publicar o jornal durante duas semanas mas tínhamos de continuar. Contámos como durante o massacre tinham sido violadas mulheres, como tinha havido miúdos mortos sufocados, tudo o que tinha acontecido. A certa altura, prenderam uma das minhas colegas e a mãe dela pediu-nos que fossemos a sua casa. Era uma armadilha, para nos prenderem. As primeiras foram apanhadas mas uma amiga minha telefonou-lhes e percebeu que se passava algo de errado. Foi aí que fugi, primeiro para o Líbano. Outros fugiram para Amã, alguns vieram logo para a Turquia.

Passámos a ter pessoas dentro e fora da Síria e começámos a escrever também sobre os problemas dos refugiados. Entretanto, vários dos membros do jornal que ficaram foram presos. Alguns passaram dez meses na prisão e foram libertados, e então também escrevíamos sobre essa experiência, sobre o que se passava nas prisões.

Alguns também foram mortos. O primeiro foi o nosso director, decidiu ficar em Darayya quando nós saímos e foi morto quando um míssil atingiu a sua casa. Depois perdemos um repórter, logo a seguir, também em Darayya. A seguir o nosso chefe de redacção. Em 2015 descobrimos que Shurbaji também tinha morrido, tinha sido torturado até à morte na prisão. Estava desaparecido desde 2012 mas só descobrimos três anos depois.

Era tão ingénua. Pensei que o que se estava a passar ia fazer o universo tremer. Mas não aconteceu nada e nós perdemos a esperança na comunidade internacional. Os ataques contra os sírios não provocaram nenhuma resposta séria, nem os ataques químicos. E o regime ainda está lá.

Nunca parei porque não estou detida, mas os meus amigos estão. Não estou morta, mas os meus amigos estão. Eles já não podem fazer nada, mas eu posso. É como se tivesse de carregar o fardo das suas mensagens, como se tivesse de continuar para dizer ao mundo o que continua a acontecer na Síria.

Texto a partir de uma conversa com Kholoud Helmi e de uma entrevista de Helmi à revista Big Issue North

Sugerir correcção
Comentar