A pandemia está a mostrar-nos quais são as amizades que vale a pena manter

“A amizade é uma filigrana de encontros”, escreveu o sociólogo italiano Francesco Alberoni no seu ensaio A Amizade. E quando os encontros são adiados ou impossibilitados por causa de uma pandemia?

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Há quem refira não ter espaço para “interacções inautênticas” Harli Marten/Unsplash

Antes da pandemia, a família de Sherilyn Carlton estava tão habituada a que os seus amigos aparecessem em casa que o seu filho mais novo perguntava: “Mamã, quem vem cá hoje?

Só por isso é de esperar que Sherilyn Carlton, de 47 anos e a trabalhar em coaching empresarial, em Battle Ground, no estado norte-americano de Washington, seja o tipo de pessoa que esteja a passar um mau bocado com o distanciamento social. Na era pré-covid, Sherilyn voava de uma corrida com um amigo para um almoço com outro, sendo que ainda tinha combinado um café para o início da tarde com um terceiro. Depois, levava os filhos e os colegas de e para o treino de basquetebol e, à noite, ainda era capaz de receber um grupo de escritores em sua casa.

De certa forma, manter um círculo de contactos mais restrito durante a pandemia tem sido difícil, admite a mulher. Quando o confinamento começou, em Março do ano passado, ela passou por uma espécie de ressaca social. Mas, depois, a vida mais calma acabou por permitir que se restabelecesse. “Fiz uma desintoxicação de todas as ligações sociais que mantinha”, diz agora. “Ansiava por ter tempo só para mim, e estou muito mais consciente de quando preciso dele.”

Para além dos seus familiares directos, Sherilyn vê regularmente dois amigos – para fazer algum exercício ao ar livre e para uns encontros para café – e, conclui, isso tem sido suficiente. “Há um grupo de famílias que costumava reunir-se regularmente... Tenho saudades disso”, diz. “Mas não de muito mais do que isso.”

Por um lado, a mulher sente-se abençoada por ter tantos amigos. Mas, assim que a sua família for vacinada e a vida começar a acelerar novamente, Sherilyn pretende continuar a concentrar-se principalmente nos seus melhores amigos, em vez de se desmultiplicar para ver toda a gente e mais alguma. Ou seja, a sua cápsula social pode sobreviver à pandemia.

Restringir amizades

E Sherilyn não é a única pessoa que encontra consolo numa vida social reduzida. Tal como o teletrabalho revelou que não é necessário deslocar-se para um escritório cinco dias por semana para se ser eficiente, alguns que antes mantinham dezenas de amizades estão a aperceber-se de que se sentem mais realizados ao se manterem em contacto apenas com quem lhes é mais próximo e querido. É que, após quase um ano a viver um prolongado estado de emergência, torna-se claro a quem se pode telefonar para um passeio ou para uma conversa. E, para muitos, esses círculos são mais apertados do que nunca.

Este tempo não deixa muito espaço para aqueles amigos ou conhecidos casuais que se encontrava para beber um copo ou para almoçar de seis em seis meses. As redes sociais enganam os seus utilizadores, fazendo-os pensar que têm centenas ou milhares de “amigos”, mas a maioria não entra no grupo de gente em quem se confia. Trata-se apenas de um quadrado no Instagram, uma actualização de Facebook que se poderá “gostar” de alguém que se conheceu um dia. Juntamente com as muitas lições da era do coronavírus, há uma que vem com a idade e as obrigações crescentes: não temos de pôr toda a gente a par da nossa vida. Por isso, algumas amizades não vão sobreviver – e não há problema.

Shasta Nelson, uma especialista no tema que escreveu vários livros sobre como manter relações saudáveis, concluiu que as pessoas que dão prioridade a menos amigos, e que se envolvem mais profundamente com eles, sentem-se mais ligadas. “A pandemia deu-nos esta permissão colectiva para falar sobre as coisas difíceis que se passam nas nossas vidas sem vergonha”, diz a autora.

No entanto, Shasta Nelson ressalva que aqueles com amizades que não fizeram a transição para as chamadas telefónicas ou para as videochamadas “são as pessoas que estão extremamente sozinhas neste momento”.

Tam Sackman, uma assistente de 26 anos numa empresa de comunicações em Nova Iorque, aproximou-se dos seus melhores amigos durante o último ano – e teve mesmo aquela rara alegria de apresentar amigos de diferentes cantos da sua vida uns aos outros. Durante o Verão, Tam escolheu um pequeno grupo, todos fizeram testes à covid-19 e isolaram-se numa casa na floresta da Pensilvânia durante dois meses. Dividiram as contas e as tarefas do espaço. Todas as noites, viam um filme ou alinhavam num jogo de tabuleiro.

Em busca da autenticidade

Apesar de cada um dos amigos de Tam ter começado a experiência como desconhecido, acreditaram nela quando disse que todos se iriam dar bem. “Eles deram um grande passo ao confiarem em mim”, declara, acrescentando que tiveram uma “experiência realmente especial”.

De facto, foi um momento tão maravilhoso que Tam Sackman acrescenta que já não tem espaço para “interacções inautênticas”, ou seja, ligações que parecem mais como o trabalho em rede. Na sua maioria, não tem paciência para “a conversa fiada” com conhecidos ou amigos de ocasião. O ano passado fê-la sentir-se afortunada por ter “uma abundância de pessoas” com quem pode falar “sobre temas difíceis ou mais profundos”. Agora, já não quer outra coisa.

Supriya Gujral, de 48 anos, levou essa busca pela profundidade um passo mais longe. Durante a pandemia, a executiva tecnológica em Silicon Valley sentou-se com o marido para tentarem perceber em quem poderiam confiar se ambos adoecessem. Perguntaram-se a si próprios: “A quem pedimos para nos ligar a verificar se estamos bem? E se adoecermos, a quem pedimos para gerir as nossas coisas ou para tomar conta do nosso filho?”

Depois de pensarem, acabaram por se concentrar apenas na família mais próxima, num punhado de amigos e na babysitter do filho. O ano passado mostrou-lhe que “o tempo é muito limitado”, e Supriya ​quer que o tempo que lhe resta “seja significativo”. “À medida que sairmos disto, as coisas vão ser diferentes”, prevê a executiva. “Só não sabemos quão diferentes.”

Supriya provou o que o seu futuro lhe reserva quando ela e o seu marido planearam uma pequena reunião ao ar livre para celebrar o Diwali, uma festa religiosa hindu, que se assinalou a 14 de Novembro. Normalmente recebem cerca de 70 convidados; este ano, reduziram a lista para dez.

“Por alguma razão, tudo foi muito mais significativo”, diz, assumindo que tal como aconteceu consigo, também outros estão a pensar sobre as suas prioridades. Quando tudo isto terminar, diz que não ficará ofendida se “receber metade dos convites que costumava receber”.

Uma vez decidido a manter um círculo mais pequeno, como estabelecer esses limites? Supriya planeia ser mais transparente com os convites que não pode aceitar, dizendo a amigos ou conhecidos que um evento iria comprometer o tempo da família.

Quando uma das amigas de Sherilyn lhe perguntou quando celebrariam o seu aniversário, a coach passou um dia inteiro a pensar em como responder. “Eu queria ser honesta e autêntica e não ferir os seus sentimentos”, confessa. Acabou por dizer à amiga que já se sentia “celebrada o suficiente” para uma eremita do coronavírus. Depois disso, Sherilyn já voltou a ver a amiga e percebeu que a sua recusa não tinha provocado nenhum dano à amizade que as une.

Shasta Nelson prevê que algumas pessoas nunca mais regressarão aos níveis prepandémicos de compras ou de festas. “Não podemos dizer sim a tudo e já não queremos dizer sim a tudo.” Mas, para isso e por isso, “teremos de ser mais atenciosos”.

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