O solo de João Madeira, da sala para as nossas casas

Veio o confinamento, mas não se foi o concerto. O contrabaixista apresenta esta quarta-feira, em live streaming, a peça Aqui, Dentro, a partir do O’Culto da Ajuda.

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Nuno Martins

Quando João Madeira decidiu avançar para a apresentação da peça Aqui, Dentro no O’Culto da Ajuda, em Lisboa, esta quarta-feira, pelas 19h, não esperava ter de levar tão à letra a ideia de um concerto a solo. A perspectiva inicial era já de lotação reduzida, para um máximo de 25 espectadores, mas o regresso ao confinamento geral obrigou a uma outra solução mais extrema: o concerto acontecerá na mesma, na sala prevista, embora em absoluta solidão. Ou melhor, João Madeira estará a sós com o seu contrabaixo, numa actuação que se pode ouvir através de um live streaming no canal de YouTube da Miso Music Portugal.

“Vai ser uma experiência muito diferente, sem barulho de cadeiras ou tosses”, diz ao PÚBLICO, tentando encontrar conforto nos ganhos que a situação também proporcionará. Tratando-se de uma “peça bastante sensível”, uma das vantagens prende-se com a possibilidade de ser ouvida com auscultadores, numa alteração das condições de escuta que permitirá uma envolvência diferente com a peça.

João Madeira chama a esta criação para contrabaixo solo Aqui, Dentro e explica que a peça resulta da colagem de duas partes autónomas surgidas em circunstâncias bastante distintas. A primeira, de forma algo enigmática, é descrita como algo que vem desenvolvendo ao longo de 30 anos de prática do instrumento. E isto porque há quase um ano, por alturas do primeiro confinamento, o contrabaixista resolveu registar em casa um álbum a solo, que imaginara poder assentar na exploração da composição em tempo real a que se tem dedicado nos últimos anos, seguida de algumas pequenas improvisações. “Pensava que ia fazer um disco a solo de música improvisada”, recorda, “mas acabou por não sair nada disso”. Aquilo que se materializou, afinal, foi o desenvolvimento de “um exercício muito básico para contrabaixo, com arco e corda solta, num tempo muito lento” que lhe foi passado por um professor do Conservatório e que o acompanha desde então, regressando a ele em cada fase de estudo mais prolongada.

A esse primeiro andamento minimalista e obsessivo, em que uma só nota se vai transformando graças a variações rítmicas e aos parâmetros performativos que levam o músico a recorrer a uma paleta de diferentes técnicas, junta-se um segundo, composto para a banda sonora de Máquina Hamlet, encenação de Jorge Silva Melo para o texto de Heiner Müller que contava com a sua interpretação ao vivo. “É uma peça que vem trazer mais segurança, mais conforto e um pouco mais de musicalidade, acabando o concerto de forma mais ligeira”, descreve. E é uma peça que no teatro coincidia com a entrada do actor João Pedro Mamede “numa espécie de vácuo, numa zona de ninguém, como se estivesse a sonhar”.

As cinco peças originais compostas para Máquina Hamlet, conta o músico, foram inspiradas pelo contrabaixista e compositor italiano Stefano Scodanibbio. E embora consagrem uma assumida ligação ao texto de Müller, João Madeira explica que a sua propensão para absorver elementos da literatura ou de outras práticas artísticas se relaciona sobretudo com uma dimensão técnica. Fala-nos então da leitura de Dom Quixote, simultânea à gravação deste material em estúdio, no ano passado, na perspectiva de “um desaparecimento do autor” que encontra também em Italo Calvino – escritor de que se aproximou ao participar na última criação da coreógrafa Clara Andermatt, Parece Que o Mundo. “São essas grandes obras, esses grandes exercícios dentro da arte, que me inspiram”, reconhece.

Também na sala da Miso Music, O’Culto da Ajuda, João Madeira gravou ao vivo um duo de contrabaixos partilhado com Hernâni Faustino (RED Trio), agora editado sob o título dB Duet, encontro de duas linguagens que tanto apontam para uma sintonia quanto para um pronunciado contraste (decorrente de percursos bastante distintos) ao longo de uma correnteza de oscilações inventadas em palco, enquanto colocam em diálogo instrumentos munidos das mesmas características. Mais do que explorações tímbricas, dB Duet leva a jogo duas permanentes visões plásticas num movimento pendular entre atracção e repulsa. No fundo, ferramentas para pôr a música em marcha e não a deixar estacionar num mesmo lugar.

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