Acabar com as desigualdades para evitar o “abismo” dos movimentos populistas

As desigualdades económicas, que se traduzem quase sempre em desigualdades sociais, são o principal motor do aparecimento de movimentos populistas. Como combatê-los? Estará o Estado de Direito ameaçado? E que papel podem desempenhar os estudantes? “Democracia e Estado de Direito: uma relação ameaçada” foi o tema de mais uma PSuperior Talk.

Imagine que entrava num estádio de futebol e que, além das duas claques que apoiam os clubes, havia ainda uma outra a puxar pelo árbitro. Isso seria estranho, não seria? Pois... mas este parece ser o cenário do que está a acontecer um pouco por toda a Europa, e em Portugal em concreto. A necessidade de incentivar o árbitro (leia-se Estado) a fazer aplicar as regras do jogo parece consumir mais energia do que o incentivo aos clubes (leia-se partidos). Há neste momento mais forças partidárias a defender as regras do jogo democrático do que propriamente a debater ideias e a promover soluções para os problemas do país.

A alegoria foi lançada durante o segundo debate PSuperior Talks, subordinado ao tema “Democracia e Estado de Direito: uma relação ameaçada” e que juntou à mesma mesa virtual Francisco Mendes da Silva, ex-deputado do CDS, advogado sénior da sociedade Morais Leitão e colunista do PÚBLICO (e autor da alegoria), João Nuno Calvão da Silva, vice-reitor e professor de Direito da Universidade de Coimbra (UC), e João Assunção, presidente da Direcção-Geral da Associação Académica de Coimbra (AAC). A moderação foi de David Pontes, director-adjunto do PÚBLICO.

Era quase inevitável que os resultados das mais recentes eleições presidenciais servissem de pano de fundo para o debate, que foi transmitido em directo no site do PÚBLICO e no Facebook e no YouTube do jornal: de como um movimento populista, liderado por André Ventura, conseguiu uma tão grande penetração num eleitorado tão diverso. “Se essas pessoas são aquelas minorias perdedoras [do desenvolvimento económico e social] da democracia, porque as há, o problema que temos de atacar é que o progresso deixa muita gente para trás e temos de dar respostas. Temos de mostrar que aquela solução é uma armadilha para elas próprias e que não estão a ir atrás de um sonho, mas de um abismo”, defendeu Francisco Mendes da Silva.

O advogado e colunista do PÚBLICO lembrou o papel decisivo da agora União Europeia na consolidação de valores como a democracia, o parlamentarismo, a liberdade de expressão, a independência dos tribunais, sempre sobre uma base liberal. “Foi, de longe, o método político que trouxe mais paz e prosperidade.”

Porém, esse método político “tem o problema de ser incompreendido pelas minorias perdedoras. Começou pela esquerda, pelas críticas à globalização, e continua na direita, pelas críticas de certas tendências de neutralidade moral e de regime”, disse.

Sendo este um debate destinado (também) a medir o pulso à intervenção dos mais jovens na vida pública e política, João Assunção apontou o dedo à incapacidade do próprio sistema democrático actual: “Quando saímos de umas eleições presidenciais, em que vemos um projecto político que é pouco ou nada respeitador dos nossos princípios fundamentais, liberdade e igualdade, deve preocupar esta própria incapacidade do sistema em conseguir responder a este fenómeno. Após estas eleições, o que deve atender aos democratas é como actuar, como manter a capacidade de preservar este meio milhão de cidadãos, como suster estes ataques ao núcleo das nossas liberdades e garantias.”

Será uma questão de actualidade do método do discurso dos actuais partidos? João Nuno Calvão da Silva aponta a vários alvos que estão a ser falhados: desigualdades económicas, sociais e territoriais, desafios climáticos, trocas comerciais internacionais justas, globalização desregulada, combate à fraca demografia e o desafio digital. “É por não estarmos a responder a estes desafios que a minoria silenciosa acaba por encontrar respaldo em fenómenos nacionalistas, extremistas e populistas. Estes promovem o discurso do medo e isso conduz à erosão dos partidos ditos tradicionais, que devem equacionar a pulverização das minorias silenciosas”, disse o vice-reitor da UC.

A valorização da política e dos seus representantes, em que assentam os valores da civilização ocidental, é outro dos desafios actuais. Francisco Mendes da Silva acredita não haver razões para que haja quem se queira envolver na política partidária, preferindo “as redes sociais, que não têm mediação. Houve uma atomização social à conta da revolução tecnológica”. O ex-deputado do CDS defende que no Estado de Direito os fins não justificam os meios. “Aquilo que estamos a ver é que, com essa revolução, os fins justificam os meios. Quando ‘privatizamos’ a justiça, ‘privatizamos’ a democracia, ‘privatizamos’ o Estado de Direito. Não existe Estado de Direito sem Democracia”, acrescentou o advogado.

João Assunção sublinhou a ideia de que há outras formas de participação cívica e política para além da via dos partidos tradicionais, dando como exemplo os sindicatos, que “estão a esboroar-se, muito provavelmente por causa da revolução tecnológica”, embora tenha reforçado que os partidos “continuam a ser as pedras de toque da democracia, até por uma lógica de conseguirem compartimentar as ideologias”. Falando dos resultados das eleições presidenciais deste domingo, o dirigente da AAC não acredita que “meio milhão de pessoas tenham acordado como fascistas”. “Mas, esta é uma experiência histórica que não devemos esquecer”, frisou.

Então, como podem os mais jovens actuar? O dirigente estudantil falou no seu caso em particular: “A AAC, tendo em conta a sua história em regimes nada democráticos, tem uma responsabilidade óbvia de ser um baluarte de resistência. Iremos preservar a nossa identidade, lembrando o papel fundamental nas lutas académicas de 1968. Manteremos a nossa resistência para preservar os valores das liberdades e garantias”.

Na abertura desta talk, Manuel Carvalho, director do PÚBLICO, e Amílcar Falcão, reitor da Universidade de Coimbra, realçaram a importância da promoção da literacia mediática dos estudantes, em defesa da cidadania, caracterizando a iniciativa das PSuperior Talks como um estímulo ao debate sobre os temas mais candentes da actualidade. “Este combate tem de se travar a todo o momento, em defesa do Estado de Direito”, sustentou Manuel Carvalho. Amílcar Falcão sugeriu a leitura de O Triunfo do Porcos, de George Orwell, o que levou a que também Francisco Mendes da Silva deixasse uma sugestão de leitura durante o debate: O Filho do Século, de Antonio Scurati. Para ajudar a melhor compreender os nossos tempos.

Em Janeiro, a primeira destas PSuperior Talks foi subordinada ao tema “A comunicação na era dos algoritmos: decides tu ou decidem por nós”.

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