Cookie ganhou uma família na pandemia. Mas o abandono continua a preocupar as associações de animais

Mais abandono, menos adopções, voltam a reportar as associações de protecção de animais. Cookie encontrou uma família para sempre no meio de uma pandemia que torna impossível, para muitos tutores, continuarem a cuidar dos animais de companhia.

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Rui Gaudêncio

Daisy Pereira pensou e pensou antes de decidir que o momento tinha, finalmente, chegado. “Sempre quis ter um cão e o facto de ter de ficar em teletrabalho acabou por ser decisivo”, conta ao P3. Em plena pandemia, adoptou Cookie, a cadela que espreita, curiosa, nas imagens que acompanham este artigo.

experiência de adoptar um animal num momento em que é exigido que fiquemos em casa é “gratificante”, considera. No entanto, para a nova tutora de Cookie, a responsabilidade de ter animais não é nova. Daisy já era tutora de um gato quando decidiu visitar a União Para a Protecção dos Animais (UPPA), uma associação no concelho de Sintra. Também por isso, sentia-se preparada para adoptar um animal de companhia num momento em que muitas associações receiam entregar os animais que têm a seu cuidado. O risco de abandono, alertam, é elevado. 

“É como um bebé. Ela precisa que eu a leve a passear, precisa de brincar”, alerta Daisy Pereira. Além da companhia que Cookie faz, ter um cão em casa tem ajudado, também, os filhos da tutora. 

Muitas associações e centros de recolha oficiais, não só em Portugal, registaram um aumento significativo nos pedidos de adopções de animais, sobretudo durante os meses de confinamento, nota a SOS Animal

“Uma vez que era necessário permanecer em casa, havia pedidos de adopção só para terem um motivo para saírem de casa, afirma Clarisse Cerdeira, vice-presidente da SOS Animal. Por isso, os pedidos que chegam à associação têm de passar por uma “triagem mais apertada”.

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“Sempre quis ter um cão e o facto de ter de ficar em teletrabalho acabou por ser decisivo”, diz a tutora de Cookie Rui Guadêncio

Também a Associação São Francisco de Assis se confrontou com esta situação. Por isso, durante os meses de Março e Abril, os primeiros de confinamento, a associação não permitiu que fossem realizadas adopções. Segundo o relatório operacional, entre 1 de Janeiro e 31 de Agosto de 2020 foram adoptados 365 animais, menos 113 face ao mesmo período de 2019.

No mesmo período, a PSP e a GNR somaram 667 casos de abandono de animais de companhia, a maioria em Lisboa, Porto, Setúbal e Leiria. Nos mesmos oito meses do ano anterior, não registavam 500. 

​Na União Zoófila, em Lisboa, “à medida que isto foi avançando, a situação tornou-se cada vez mais dramática e mais difícil”. Os donativos diminuíram “drasticamente, para menos de metade”, diz ao P3 Luísa Barroso. “Não há dia nenhum em que não recebamos um pedido de ajuda, via telefone, porque via e-mail são uma data deles. Até de fora de Lisboa. As pessoas estão aflitas”, alerta. 

A provedora municipal dos Animais de Lisboa, Maria Quaresma dos Reis, mencionou como possíveis causas do aumento aparente de abandonos as perdas de emprego e a morte de idosos que viviam sozinhos com os animais. 

Um dos mais recentes apelos falava de um “animal que foi amarrado a um carrinho de supermercado, virado ao contrário e coberto com um plástico”, conta, ao P3. As pessoas abandonam-nos, deixando indícios claro que tinham alguém responsável pela sua guarda.”

A provedora não justifica” os abandonos, mas afirma que existem muitos “abandonos por desespero de causa”. Depois, há “muitas situações em que as pessoas abdicam da posse do animal, pedindo ajuda para procurar uma solução, porque elas próprias deixam de ter casa”. 

Desde o início da pandemia, a provedoria fez “algumas recomendações à Câmara de Lisboa, que, infelizmente, não foram acolhidas”, diz. Por exemplo: Destinar a verba que está prevista no regulamento de funcionamento da provedoria - embora nunca nos tenha sido atribuída - para apoiar as associações locais. Fizemos também uma recomendação para que a proibição de alimentação de animais errantes, que não esteja autorizada pelo município, em sítio público, fosse suspensa durante o período da pandemia. Não faz sentido, com o aumento dos abandonos, que alguém seja autuado por alimentar um cão que foi abandonado”, defende

Pensar, antes de adoptar

Para auscultar a pandemia a quatro patas, a AnimaLife lançou dois inquéritos a mais de 200 associações de protecção animal do país. Responderam cerca de 140. E, dizem, as respostas não deixam dúvidas: “O abandono de animais subiu significativamente na sequência da pandemia, ao passo que o número de adopções desceu”. “As dificuldades económicas das famílias a par da incapacidade para garantir bens e serviços de primeira necessidade, como alimentação ou tratamentos médico-veterinários aos animais, são actualmente as duas grandes causas que levam ao abandono em Portugal”, alertam.

A maioria das associações inquiridas aponta para uma taxa de abandono entre os 10% e os 20%. Mas mais de 20% das associações admitem uma subida bem mais significativa – superior a 30%, notam, num comunicado de Dezembro de 2020. Estes abandonos albergam os contactos de tutores que deixam de conseguir cuidar dos animais, e procuram entregá-los. 

Em Dezembro, voltaram a comprovar os receios do primeiro inquérito, efectuado em Março, no início da pandemia em Portugal. A maioria das associações (60,7%) admite que tem tido alguma dificuldade no acesso a produtos e bens necessários ao seu dia-a-dia, como desparasitantes (59,3%), alimentação para gato (51,4%) e alimentação para cão (49,3%). 

​Quanto às adopções efectuadas, devem-se, na maioria, ao aumento do tempo disponível para dedicar aos animais, na sequência do confinamento ou do teletrabalho. “Houve também muitos animais adoptados neste período com o objectivo de fazerem companhia a um outro animal já existente na família”, diz a AnimaLife.

Joana Rita Sousa, voluntária na UPPA, onde Cookie esperava por uma família permanente, considera haver “uma responsabilidade cada vez maior na adopção”. “Há cada vez mais pessoas a fazer muitas perguntas, não é aquele impulso de fazer só porque sim”, acredita.

Ainda assim, o abandono continua a ser um problema. “Infelizmente, ainda não há uma situação zero em relação ao abandono. E as pessoas devem ter uma noção que há coisas que não correm logo bem à primeira”, refere. Além de voluntária na UPPA, Joana Rita Sousa é também tutora de um cão. “Eu sempre tive cães, por isso vi-o sempre como algo natural cá em casa”, começa por contar. “Ao viver numa aldeia, tenho condições para ter o animal comigo e isso faz toda a diferença”, acrescenta.

No final, deixa o apelo. “[Antes de adoptar] é preciso pensar sempre muito bem se podem incluir o vosso animal na rotina, se têm condições para ter um animal. E os animais seniores também não devem ser esquecidos e devem ser adoptados.” 

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