Portugueses de bem e os outros...

...Ou como distinguir as pessoas que devem ser reconhecidas como seres humanos de pleno direito.

Foto
Um refugiado sírio à chegada à ilha grega de Lesbos procura manter os filhos a salvo Reuters/YANNIS BEHRAKIS

No livro Os homens-lixo de Leonel Moura (2000) é descrita a seguinte situação verídica: “Um vagabundo que dormia num contentor foi recolhido pelo camião do lixo e viu as suas pernas serem parcialmente trituradas pelas garras da máquina.” Neste livro o autor aborda a questão sem-abrigo enfatizando que as pessoas em situação de sem-abrigo são encaradas pela sociedade, não apenas como indivíduos que vivem no ou do lixo, mas são eles próprios considerados “lixo”.

Por que me lembrei deste episódio? Porque os discursos de hoje cada vez mais se dicotomizam entre as “pessoas de bem” e aquelas que “vivem à custa dos subsídios e que não querem trabalhar”, fazendo lembrar a legislação, no reinado de D. Afonso II (1211 a 1223), que distinguia os “homens bons” — os que trabalhavam —, dos “homens maus” — aqueles não tinham um ofício, e que por isso eram considerados vagabundos e inúteis e relegados ao degredo.

Um discurso com mais de sete séculos, reforçado no século XX com o icónico símbolo de Auschwitz, a inscrição “Arbeit macht frei” (o trabalho liberta) e que reaparece nos dias de hoje sob os discursos dos “portugueses de bem” e os outros, os “bandidos”.

Mas por que razão esta distinção entre “bons” e “maus” me parece particularmente perigosa? Acima de tudo porque implica que nem todas as pessoas são (formal e informalmente) reconhecidas como seres humanos de pleno direito e que o apoio social deixa de ser enquadrado como um direito social universal (como por exemplo a educação ou a saúde), mas como algo que pode ou não ser “oferecido”, ficando o apoio condicionado à adesão de determinado comportamento considerado normativo, o qual é condicionado pela própria visão (subjectiva e pessoal).

Estes aspectos são ainda agravados na medida em que o apoio de que estamos a falar tem-se centrado, em grande parte, em aspectos relacionados com necessidades básicas de sobrevivência (acolhimento, alimentação, higiene, rendimento social de inserção, etc) sendo, por isso, particularmente grave enquadrar-se algumas pessoas na categoria de “não merecedoras”.

Mas esta dicotomia entre “nós” e “eles” tem ainda um efeito mais perverso: além de descrever a sociedade e o mundo de forma simplista, ela acaba por condicionar a própria realidade. Senão vejamos

Foto
"Death at the gates of heaven" Javier Bauluz (2000) Javier Bauluz

Nesta foto, registada por Javier Bauluz, a 2 de Setembro de 2000, e que venceu o prémio Pulitzer, um casal de turistas mantém-se indiferente a escassos metros do corpo de um imigrante que morreu afogado durante um naufrágio.

Ao ver esta fotografia constatamos de forma crua e nua que os discursos marcados por uma polaridade entre o bem e o mal, os bons e os maus, os trabalhadores e os subsidiodependentes, os que são úteis à sociedade e os que vivem às custas dos outros convocam-nos para a mais grave situação de exclusão social: a da invisibilidade e indiferença que nega a humanidade dos “outros”.

Adaptando as palavras de Romano no seu livro A intoxicação linguística: o uso perverso da língua (2008), diria que a guerra a travar não é contra o outro, mas contra a pobreza e essa só pode ser combatida alterando as condições que a geram, mudando o modo de vida, o desperdício, as formas de pensar dicotómicas e as formas de distribuir a riqueza.

Sugerir correcção
Comentar