A gramática do amor

As palavras são poder. Tanto podem subjugar como empoderar. Por exemplo, no campo das relações amorosas.

As palavras acompanham-nos, protegem-nos, explicam-nos e afectam-nos. O seu poder pode ser usado para subjugar ou capacitar, marginalizar ou integrar, entristecer ou alegrar. Mudar o significado de uma palavra é transformar o sentido do mundo que ela declarou. Não espanta que nos últimos anos se tenha falado tanto de conflitos a propósito de linguagem.

E não surpreende porque muitas vezes traduzem modelos de dominação que são reproduzidos como sendo “naturais” ou “normais”, e que têm vindo a ser postos em causa, quando se fala de patriarcado, colonialismo ou classismo. Inevitavelmente existe quem se sinta posto em causa e diga do alto do seu privilégio que é tudo exagero, ou que é inventar problemas onde eles não existem, entendendo as críticas à emanação dessa violência naturalizada como se fosse censura. O amor romântico, encarado como acontecimento e não como percurso, como uma ocorrência de enamoramento suprema em que se idealiza o outro, moldando formas de olhar, de sentir, de pensar e dizer, é um dos terrenos onde isso se verifica.

Há dias dei por mim a pensar nisso quando andando pela rua ouvi uma voz feminina dizer, em tom algo angustiado, “sem ti não sou nada”, para aquele que supus ser o namorado. Haverá provavelmente muita gente que verá nessa proclamação um romantismo exacerbado, e fora de época, que já nem nos filmes se usa, mas talvez, até por isso, algo emocionante. É uma forma de ver as coisas. Há outras. Até porque essa declaração é o tipo de lugar-comum que acaba por validar um exercício de dominação através da gramática do amor romântico, inserida tanto na cultura como na permeabilidade, nunca inocente, da linguagem de uso quotidiano. Existe todo um sistema de certezas de matriz patriarcal que ampara declarações que são aceites como verdades, devido à socialização e regularização de certas narrativas que acabam por dar forma e linguagem às sociabilidades.

No amor romântico, de maneira muitas vezes subtil, é atribuído às mulheres um papel subalterno na disposição da relação sentimental. O ponto de partida do mito é que o sujeito sofredor inflige a si mesmo os efeitos do poder. É daí que irrompem estereótipos paradoxais. Às vezes ouvimos dizer que quando o amor é verdadeiro suporta-se tudo, mas aguentar tudo pouco tem a ver com a omnipotência do amor, mas com baixa auto-estima ou alta dependência. Outras vezes proclama-se que o amor verdadeiro é eterno, mas tantas vezes que o deslumbramento é fugaz, ou em sentido oposto, se transformou em algo sempre obsoleto. Também se proclama que não se pode ser feliz sem par, o que até certo ponto se percebe, mas outorgar satisfação ao simples facto de se ter um, independentemente da forma que determinada relação assume, parece pouco lógico. E quando se ouve que ciúme é prova de amor ou que amar é renunciar, apetece declarar que essas enunciações não aclaram a presença de amor, mas a ausência de uma comunicação plena ou de um dinamismo de bem-estar.

Às vezes de forma explícita, outras de maneira quase imperceptível, ou até mascarado de humor, o patriarcado está bem vivo, não é nenhum fantasma, e a linguagem não lhe escapa. As manobras de subordinação começam quase sempre no que é dito. A maneira como vivemos os afectos e a forma de cuidarmos uns dos outros, influenciarão as narrativas que viermos a escrever sobre o amor. Mesmo quando pensamos que estamos a operar num quadro interpessoal, inevitavelmente existe a mediação do ecossistema social onde estamos. Só teríamos a ganhar em cuidar das palavras que formam a gramática do amor, desvinculando-o de qualquer alusão que implique submissão ou posse. Já está a acontecer há anos. Acelerou nos últimos tempos. Mas há ainda um caminho a percorrer.

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