Esta escreveu-se sozinha

Se ao menos ainda lhe servissem um café ao postigo, uma ideia talvez a alumiasse, talvez lhe desse a força vital e o fio condutor que separa a imortalidade da espuma.

Esta crónica escreveu-se sozinha. Começou assim, com uma frase mentirosa, como quem pisca o olho ao leitor que passa, a chamá-lo para um copito ao fim do dia num recanto sem vírus. Não quer parecer metediça, mas precisa de um pretexto para tirar a máscara que a sufoca e lhe embacia o pensamento.

Encheu-se de ganas, esta crónica, para se atirar aos mais prementes assuntos do dia, do estado do mundo ao estado da rua, vociferando a diferentes níveis consoante o tema da moda. Dispôs-se a polemizar sobre tudo e nada e a desbaratar de uma assentada um punhado de articulistas insolentes. Mas baralhou-se no caminho, esmagada por tanta coisa que tinha para dizer sem saber como.

Como não sabe bem a quantas anda, esta crónica escreveu-se sozinha, ao correr da caneta, a mesma com que de manhã foi para a fila esperar o voto. A crónica baralha-se, não sabe se pode percorrer o caminho eleitoral em dia de sufrágio, as regras arcaicas já a confundem. Deixa-se ficar, passito a passito, ouvindo ao longe a voz que grita nomes de cidadãos e vaticina “Votou!”, que é o atestado de bom civismo.

Mas a crónica sabe que deixar-se andar é fraca ideia. Exigem dela uma afirmação, uma posição firme, uma proclamação acerca da vida e do mundo que sirva ao menos para pôr em destaque na página que a contém. Inquieta-se. Quem é o incauto que a procura para formar opinião do mundo quando se faz acompanhar por notícias, reportagens, literatura, cinema, exposições, música e sabe-se lá que milhentas outras fórmulas de sobrevivência inventadas pelo Homem?

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"A crónica baralha-se, não sabe se pode percorrer o caminho eleitoral em dia de sufrágio, as regras arcaicas já a confundem" Unsplash

Rejeita a responsabilidade. Amedronta-se também. Se é inútil, para que existe? E revolta-se, por fim. Mas terá de haver utilidade em tudo? Contenta-se a crónica em fugir ao que dela esperam, em proclamar, mesmo querendo evitar as grandes frases, que enquanto ela durar será porto seguro contra afirmações, posições firmes e proclamações. Deixou-se cair na armadilha. Aplica mais álcool-gel à corrente das ideias.

Retoma o seu passo, escreve-se sozinha, se um sonho de esperança lhe surgir não crerá nele – e tem a impressão de que esta frase é já cliché por outro declamada. Se ao menos ainda lhe servissem um café ao postigo, uma ideia talvez a alumiasse, talvez lhe desse a força vital e o fio condutor que separa a imortalidade da espuma.

Não adianta. Escreve-se sozinha, cinge-se aos poucos metros quadrados que lhe couberam em sorte, come mais um chocolatinho para arranjar forças, observa à janela a cidade a esvaziar-se lentamente conforme a intensidade da chuva e da doença.

O editor abeira-se e olha por cima do ombro – tudo à devida distância, claro! Nada diz, mas nem precisa. Cobiça a crónica, rápida e plenamente. Ela sabe. Advêm-lhe suores frios para atrapalhar. O tique-taque do relógio faz-se subitamente presente. Enerva-se, esbraceja, dá mais umas voltas à sala e da varanda constata a cidade a esvaziar-se lentamente.

Bolas, já se repetiu. Como não, se os dias correm iguais aos dias que vão distantes?

Agarra um livro de filosofia barata, três ou quatro lugares-comuns salvarão as linhas que ainda faltam. Pousa-o logo de seguida, as banalidades embaraçam-na. Surpreende-se ao perceber que aprende mais sobre a vida ao ver uma telenovela brasileira com 20 anos do que a ler filósofos de boa catadura. Exaspera-se a crónica: esta frase pareceu pedante.

E então decide que mais vale assumi-lo de uma vez. Se o leitor acreditou na frase mentirosa do início e se deixou ficar, bem merece que lhe paguem uma bebida. Escreveu-se sozinha, acabou contente. Só não se lembrou de que não há onde se beba um copo. Ora bolas.

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