O tsunami do Índico trouxe “uma mudança de mentalidade” na protecção costeira

Para Fernando Carrilho, chefe de divisão da geofísica do IPMA, o tsunami de 2004 acordou o mundo para a necessidade de proteger as regiões costeiras destes fenómenos. Passados 16 anos, ainda não temos um sistema de protecção inteiramente de pé. Mas a ciência avisa-nos de que há bombas-relógio que podem gerar a próxima grande onda.

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Filipa Fernandez

Em oito minutos, Portugal consegue avaliar se um sismo no Atlântico poderá produzir um tsunami perigoso. Este mecanismo de alerta que pode salvar muitas vidas é o resultado do tsunami do Índico de 26 de Dezembro de 2004, originado por um sismo perto de Sumatra. Juntos, os dois fenómenos mataram perto de 230.000 pessoas. Na ressaca da catástrofe, que o mundo testemunhou pela televisão ao ver imagens do mar a entrar terra adentro, as instituições internacionais aperceberam-se da importância de criar sistemas de alerta contra estas grandes ondas, como o que já existia no Pacífico. Pouco tempo depois nasceu o Sistema de Aviso e Mitigação de Tsunamis do Atlântico Nordeste, Mediterrâneo e Mares Conexos, que reúne vários países europeus e africanos, incluindo Portugal.

O Centro Nacional de Alerta de Tsunamis, que funciona no Instituto Português do Mar e da Atmosfera (IPMA), é agora responsável por detectar potenciais tsunamis e dar o alerta a nível nacional e às autoridades de países como França, Espanha e Marrocos. Fernando Carrilho, engenheiro e chefe de divisão da geofísica do IPMA, explica nesta entrevista que falta desenvolver o sistema de aviso à população, uma responsabilidade da Autoridade Nacional de Emergência e Protecção Civil. E avisa que, apesar de Portugal ter um risco de tsunamis baixo, o potencial catastrófico é grande: “Um tsunami como o de 1755 iria hoje ter um impacto muito, muito, muito significativo.”

O que mudou com os tsunamis de 2004, no Índico, e de 2011, no Japão?
O tsunami de 2004 teve um enorme impacto na população, mas também na ciência, em particular no sistema de alerta precoce de tsunamis. Até à época não havia um sistema coordenado globalmente, existia apenas um no Pacífico. E o tsunami de 2004 marcou a tomada em mãos por parte da Comissão Oceanográfica Intergovernamental da UNESCO da criação de um sistema global de alerta precoce dividido em quatro subsistemas: Pacífico, Índico, Caraíbas, e Atlântico Nordeste e Mediterrâneo, de que Portugal faz parte. A grande mudança foi a consciencialização da necessidade de proteger todas as costas expostas ao risco de tsunami.

No caso de Portugal, como está o sistema de alerta de tsunamis?
O primeiro grande passo foi a criação do Centro Nacional de Alerta de Tsunamis que entrou em operação plena no fim de 2017, que funciona no IPMA. No ano de 2018 passou a integrar o sistema do Atlântico Nordeste e do Mediterrâneo. No caso do IPMA, a sua zona de actuação é o Atlântico Nordeste, onde monitoriza, vigia e difunde mensagens com a informação relevante para os sistemas de gestão de emergência, a Autoridade Nacional de Emergência e Protecção Civil e os serviços regionais. Depois, é responsabilidade destas unidades reagirem e fazerem chegar esta informação à população.

Esse segundo momento de aviso à população já está implementado em Portugal?
Já há algumas iniciativas interessantes e valiosas ao nível de municípios, em Cascais, na área metropolitana de Lisboa, em Lagos, em Portimão e em Setúbal: a sensibilização à população, a definição de rotas de evacuação, a aquisição e instalação de sirenes de aviso à população. São pequenos passos face ao que é necessário fazer.

O ideal seria que este serviço chegasse imediatamente aos telemóveis das pessoas?
Sim, há aqui questões inerentes às competências de cada entidade. No ordenamento jurídico em Portugal, o IPMA não está mandatado para alertar directamente a população. Essa responsabilidade é da protecção civil. Isso é o que acontece em todos os países europeus. Há excepções: no Japão o mandato para alertar a população está nas mãos da Agência Meteorológica Japonesa. Se há um tsunami, eles avisam por vários meios, através dos smartphones, dos canais televisivos e sirenes.

Se um sismo equivalente ao de 1755 ocorresse hoje, as pessoas seriam avisadas?
A única forma de chegar às populações é através de sirenes em alguns locais, muito poucos ainda. E eventualmente o aviso de rádio, qualquer coisa que se consiga meter no ar rapidamente. Mas o aviso personalizado através dos smartphones ainda não está implementado. Sei que se está a trabalhar nisto dentro da protecção civil.

Quantas pessoas em Portugal correm risco em relação aos tsunamis?
Varia muito em função da hora do dia e do período do ano. No mês de Agosto, em que podemos ter nas praias muitíssimo mais gente do que é habitual, aí temos o factor de exposição extremamente elevado. Assim como podemos ter situações de Inverno, à noite, em que as pessoas não estarão tão expostas. Mas existem outros elementos expostos, as infra-estruturas portuárias, as marinas.

Como funciona o sistema de alerta?
É um sistema de detecção de tsunamis gerados por sismos. A rede sísmica, que faz a detecção do sismo, permite avaliar a sua localização, profundidade, distância à costa e a magnitude. A partir daí, é estabelecido um nível de alerta recomendado para os vários pontos da costa. Após a detecção do sismo, no prazo de oito minutos, o tempo mínimo para avaliar um grande sismo, deverá ser emitido uma primeira mensagem de alerta, quando ainda não há confirmação se um tsunami foi gerado.

A confirmação é feita posteriormente através dos sistemas que medem as variações do nível do mar, que em Portugal e nos restantes países europeus está limitada à maregrafia costeira. Só quando a onda atingir o primeiro marégrafo é que podemos validar que temos um tsunami. O ideal seria medir a variação do nível do mar longe da costa, com sistemas de observação em oceano profundo, que não estão implementados por serem extremamente dispendiosos. Mas há uma expectativa muito positiva em desenvolvimento.

Qual?
O anel de comunicações através de cabo submarino que interliga os Açores, o Continente e a Madeira, uma infra-estrutura básica para a coesão territorial, tem de ser substituído porque a partir de 2024 atinge o fim de vida. No âmbito desse grande investimento do Estado português, foi decidido que os [novos] cabos submarinos deveriam ter serviços adicionais, sensores sísmicos, sensores de pressão absoluta, que permitem medir a variação do nível do mar. Se um tsunami estiver a passar naquela zona, ele vai ser identificado antes de chegar à costa. Isso permite acelerar a validação da mensagem inicial. E passa a ser possível conhecer qual é a altura da onda naquele local e fazer previsões mais rigorosas.

O alerta à população é feito após a informação dos sismógrafos e antes da confirmação do tsunami?
Exactamente. A primeira mensagem traz já uma recomendação do nível de alerta. Existem três níveis. Se a avaliação corresponder a que a onda num dado ponto costeiro não ultrapassa os 20 centímetros, considera-se que não há perigo de impacto. Se se determinar que a onda pode exceder os 20 centímetros e ir até meio metro, é emitido uma mensagem de nível dois, que pode haver fenómenos de recuo do nível do mar, danos em portos e marinas, pequenas inundações em praias em baías mais fechadas. Se há uma expectativa que o nível máximo da onda supera o meio metro, então é emitido o nível de alerta máximo e considera-se que há o risco de inundação costeira generalizada.

Num artigo de revisão de 2019, explicava-se que os tsunamis de 2004 e 2011 tinham demonstrado que o potencial catastrófico dos tsunamis foi subestimado. Isso também acontece na Europa?
Pode ser. No caso de Sumatra, foi um sismo de uma dimensão impressionante que gerou aquele mega-tsunami. O do Japão trouxe ainda o problema do multirrisco. Ocorreu um grande terramoto, de magnitude 9,1, ocorreu um grande tsunami, que foi um segundo evento em cascata. E em Sendai tivemos a explosão da central nuclear. Este problema dos riscos em cascata é algo que ficou bem patente. No caso da Europa, o que sabemos de 1755 é por descrições históricas. E estávamos numa época em que a ocupação costeira não tinha nada a ver com o que é hoje, em termos da presença de população em zonas urbanas junto à costa, de turismo e da ocupação das praias, e da existência de grandes infra-estruturas portuárias. Um tsunami como o de 1755 iria hoje ter um impacto muito, muito, muito significativo. É uma outra dimensão.

A memória do sismo e do tsunami de 1755 está bem presente em Portugal, porque é que só acordámos para este risco neste século?
Talvez por a probabilidade ser muito baixa, são fenómenos felizmente raros, muito espaçados no tempo, e é mais fácil pensarmos “isto não é algo que seja frequente, temos outros riscos com que nos preocupar” e foi essa mentalidade que mudou. Verificámos que em 2004 e 2011 aconteceram dois dos maiores tsunamis de que há conhecimento, apenas com sete anos de diferença. E houve uma mudança de mentalidade, pelo menos em perceber que há que vigiar, detectar e alertar, isso ficou instituído e é uma prática internacional a este nível.

Em 2014, foi publicado um artigo que agregava a informação existente de tsunamis que ocorreram na Europa nos últimos milhares de anos, a partir de dados históricos, obtendo-se um mapa com os tsunamis passados. Qual a sua importância?
É avaliar o perigo e quantificá-lo. Porque isso é um instrumento fundamental para o planeamento. Há um projecto europeu que é o Tsumaps, que é um site público em que é feito um estudo probabilístico de perigo de tsunami para a região do Nordeste Atlântico e Mediterrâneo. E é bastante importante para o planeamento do que fazer.

Para Portugal qual é o risco de sermos atingidos por um tsunami?
Não é muito alto, em comparação com outras zonas, mas o impacto pode ser muito elevado, é possível que ocorram grandes sismos que produzam grandes tsunamis.

Já se estimou o período de recorrência do tipo de sismo de 1755?
Pode-se falar em 2000, 4000 anos. Não há acordo entre os cientistas sobre esta matéria. Mas o que resulta daqui é um período de recorrência longo, que determina uma probabilidade de ocorrência baixa, mas a dimensão do que pode acontecer é muitíssimo elevada.

É a partir daí que se deve prevenir?
Claro, conhecer o que pode acontecer, onde, agir em função disso.

Há investigação científica que analisa os sedimentos marinhos à procura de vestígios deixados por tsunamis. Que informação já obtivemos sobre a recorrência de tsunamis em Portugal?
O que aparece muito claramente identificado é o tsunami de 1755. Há também outro aspecto importante que são os deslizamentos submarinos. Pode ocorrer um sismo cuja dimensão não é tão grande, mas a vibração do fundo marinho pode ser suficiente para provocar deslizamentos submarinos, que podem originar tsunamis. Nesse aspecto, já foram identificados alguns casos.

Qual a diferença entre os tsunamis gerados por deslizamentos de terra e por sismos?
Um tsunami gerado por um grande sismo resulta em ondas muito longas, que têm o potencial para se propagar a grandes distâncias. Os tsunamis gerados por deslizamentos, quer submarinos quer subaéreos, geram sinais de muita alta frequência e que têm efeitos localizados, embora possam representar alturas de ondas muito significativas. É o caso do que aconteceu na costa Sul da Madeira, em 1930, em que uma derrocada de uma parte da ilha no Sul gerou uma onda de grande dimensão e vitimou pessoas junto à costa, mas teve efeitos muito localizados.

Estão estudados os lugares de maior risco de deslizamentos relativamente a Portugal?
Há alguns trabalhos científicos que identificaram essas assinaturas próximo de Lisboa, na zona do golfo de Cádis e a oeste de Sines.

É mais complexo criar um sistema de alerta para este tipo de tsunamis?
Muito mais, acima de tudo porque é algo de escala local. É quase um sistema dedicado a um determinado local, ao contrário dos originados por sismos, que podem ser tratados a nível regional.

O que fazer em relação a estes tsunamis?
Eu diria que é a prioridade seguinte. Tem de ser feita uma identificação das fontes, que perigo é que representam para as regiões costeiras mais próximas e em função disso projectar sistemas locais.

Um artigo de 2015 avançava com a hipótese de que há 73.000 anos a derrocada de uma parte do vulcão na ilha de Santiago, em Cabo Verde, tinha originado uma onda de 170 metros. Corremos este tipo de risco?
Sim. Há alguma especulação sobre o que se passa nas Canárias com um dos flancos do vulcão El Teide (em Tenerife), que terá uma extensão de 50 quilómetros e que se se desprendesse poderia gerar um tsunami de grande dimensão. Que ele vai gerar um tsunami local, certamente, mas o alcance é mais questionável. Mas há autores que consideram essa possibilidade.

São várias bombas-relógio na natureza...
Potencialmente, várias bombas-relógio.

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