Um Natal por uma geração

Salvar o Natal significou aligeirar a pressão colocada durante largos meses na mola da capacidade de resistência dos portugueses, que finalmente podiam circular sem restrições entre concelhos, podendo juntar à mesa a família que o vírus havia sequestrado durante praticamente um ano.

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Daniel Rocha

O anúncio feito esta quinta-feira, 21 de Janeiro, pelo primeiro-ministro, sobre a interrupção das actividades lectivas para todos os níveis de ensino, não constitui um recuo do Governo, forçado pelas circunstâncias a fazer aquilo que disse que não faria. Constitui, sim, um clamoroso fracasso do país, o deslassar de um sentido de pertença que nos constitui como comunidade.

Quando Boris Johnson fez saber que a chegada de uma nova variante do SARS-CoV-2 obrigaria a cancelar o Natal dos britânicos, estava certamente ciente dos custos dessa decisão. A contundente resposta internacional à nova ameaça, com dezenas de países a proibirem a entrada de passageiros britânicos nos seus territórios, à qual se veio juntar a decisão francesa de barrar a passagem de centenas de camiões com mercadorias, deixando depauperadas as prateleiras antes fartas dos supermercados do Reino Unido, forçou os britânicos a abandonar quaisquer veleidades de um no deal, compelidos a aceitar um acordo comercial para o pós-Brexit ditado pela lei do mais forte que a retórica inflamada de Johnson já não fazia prever.

Por cá, a escolha foi a de salvar o Natal. Pois bem, salvar o Natal significou aligeirar a pressão colocada durante largos meses na mola da capacidade de resistência dos portugueses, que finalmente podiam circular sem restrições entre concelhos, podendo juntar à mesa a família que o vírus havia sequestrado durante praticamente um ano. A boa nova surgiu atrelada à esperança de uma resposta duradoura para a crise, com a chegada da vacina antecipada para os últimos dias de Dezembro, convenientemente adornada com a profusão de imagens da inoculação dos profissionais de saúde.

Em resultado disso, circulou-se no Natal de 2020 o mesmo que em anos anteriores, na mesma altura em que o número de contágios, fruto da maior capacidade de disseminação da peste, crescia a um ritmo alarmante. O milagre português passou a significar tão-só a queda abrupta no índice de desempenho da resposta à covid-19, onde agora ocupamos, incrédulos e vexados, a última posição. Uma lástima, esta gestão da crise sanitária. É uma falha colectiva, como é fácil de ver. Não se pode culpar o Governo de querer dar alento às famílias na época em que esse espírito é mais alardeado, assegurando de permeio algum estímulo à economia antes do fecho das contas do ano; não se pode diabolizar as pessoas, acusando-as de quebra do compromisso cívico, quando se limitaram a seguir o exemplo – não foi o Presidente que disse que reuniria a família no Natal, mas apenas cinco de cada vez? Sacrificámos a ideia de ciclo longo que devemos às gerações futuras por um ganho de dois dias.

A decisão de encerrar as escolas representará um duro golpe nas aspirações de toda uma geração caso venha a ultrapassar, como é previsível, o período de 15 dias anunciado. Não são poucos aqueles que têm alertado para as consequências duradouras da suspensão das actividades presenciais, principalmente nos primeiros ciclos de ensino. As imagens de hospitais no limite, do engarrafamento de ambulâncias ou do apelo desesperado dos clínicos ditaram a estrita necessidade do encerramento das escolas. As metáforas da guerra que conhecíamos da primeira vaga da pandemia regressaram em força, fazendo valer a lógica das inevitabilidades e do mal menor.

A prioridade agora é a de salvar vidas, sem dúvida! Mas avalie-se cuidadosamente a forma e o modo como se estimará a necessidade de uma nova suspensão, principalmente se ela significar a renovação deste encerramento “cego” hoje conhecido. Se o vírus tem poupado as crianças até aos 12 anos, será realmente uma inevitabilidade a interrupção das actividades lectivas presenciais até ao 6.º ano? Atravesso uma última vez o Canal da Mancha. Não deixa de ser paradoxal que dos britânicos tenhamos herdado não o exemplo, mas tão-só a estirpe que faz com que, nesta matéria, sejamos nós quem agora conduz do lado errado da estrada. Não será demais sublinhá-lo, para que o futuro não seja novamente moeda de troca na dolorosa gestão corrente do presente.

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