Educação pandêmica ou pandemônio educacional?

O chamado “ensino à distância” não pode (nem deve) substituir-se à educação presencial clássica, baseada na instituição escolar ou universitária. Por uma série de razões de fundo.

A propósito do fecho ou não das escolas – um confinamento “mais duro” –, e que vem dividindo a opinião pública (e publicada) por estes dias – com um espaço cada vez mais central nos debates da imprensa, Governo, sindicatos, partidos –, sugere-se um ângulo menos casual para debater um problema que é, fundamentalmente, estrutural. Neste sentido, não nos interessam as motivações esgrimidas pelo Presidente da República contra o primeiro-ministro ou as escaramuças entre federações sindicais e editorialistas.

A discussão dar-se-á sobre o fulcro do ato de ensino, isto é, a aprendizagem em si. Adianto desde já o cerne de minha arguição: a instrução remota emergencial não é o mesmo que o chamado “ensino à distância”; o “EaD” nunca substitui o ato de ensino.

A crise deu lugar a um novo tipo de Pandæmonium – laboratório, à escala de milhões de alunos, docentes, pais e encarregados – em simultâneo aqui-agora globalizado, em quase todo o Planeta Terra, com autênticas cobaias humanas para aquilo a que já se chamou “EaD”. A reserva e as aspas estão mais que justificadas. Demarcam o que outrora legal, conceptualmente, se compreendia como e-learning. Os resultados da instrução remota foram inequívocos: é impossível ensinar à e com “distância social”.

Este infeliz arremedo de “EaD” não produz nem reproduz um conhecimento autêntico. São apenas doses homeopáticas de informação fragmentada. Transforma-se, assim, o professor num instrumento de um computador que comanda programas, conteúdos, métodos, tempos e ritmos de trabalho. O docente passa daí a ser um apêndice da máquina, um novo Chaplin dos velhos Tempos Modernos. Vão aumentar e muito – por isso mesmo – o dito “burnout”, a alienação, a reificação e o sofrimento ético docentes.

É o professor-operário – um novo patamar da proletarização e do mal-estar docentes – que abre um teste padronizado, ao pior estilo à americana, e os alunos respondem, já preparados para uma futura linha de montagem na qual vão ser inseridos por este imenso neoliberalismo educacional. Expropria – ainda e mais – os alunos das classes trabalhadoras e intermédias das verdadeiras formas sociais de conhecimento. O “EaD” expropria o mestre-escola de ser criativo, e desprofissionaliza-o, além de destruir sua vida pessoal, familiar e social. Enfim – como assistimos nestes meses –, reconverte-se a sua casa em uma “unidade produtiva” sem por isso recriar as “escolas” lá do outro lado do ecrã.

O “EaD” não pode (e nem deve) substituir-se à educação presencial clássica, baseada esta (sempre) na instituição escolar ou universitária. Por uma série de razões de fundo. Os saberes objetivos – ensinados desde escolas, institutos, faculdades e universidades – pressupõem o processo de formação de aptidões intelectuais e morais que o estudante ainda não possui e que passará a adquirir à medida mesma que os novos conceitos científicos, filosóficos ou artísticos produzam aí novas subjetivações no seu pensamento e linguagem. Isso requer que a atividade de estudo dos alunos seja pedagogicamente guiada pelo professor, o qual oferece o suporte didático necessário para que a apropriação dos novos complexos categoriais seja, daí, objetivada por cada um dos estudantes em sala de aula, com seus diversos ritmos, intensidades de desenvolvimento humano de nexo psico-físico.

Todo o liame do ato de ensino é uma produção não-material de tipo coetâneo e similar ao que é, por exemplo, o ato médico. Explicamo-nos. Os seres humanos destacam-se das demais espécies não só por transformar a natureza, que nos rodeia, mas, também, por transformar a própria natureza humana, que nos habita. Além de hospitais, telemóveis, escolas e vacinas nós produzimos previamente conceitos, imagens, valores ou hábitos – isto é, bens não-materiais. Dentro da produção não-material existe aquela que se separa do produtor, tal qual uma tela pintada pelo artista, e aquela que dele nunca se separa, como é o ofício do médico e do professor. Diagnosticar um paciente, ou ensinar um aluno, é sempre uma “produção” coetânea ao “produto”, seja a cura do doente ou a educação do aluno. É por tais caracteres do trabalho essencial de médicos, de enfermeiros e de professores que se torna tão difícil “desumanizar-se” tais atividades vitais. A educação é produzida-consumida no mesmo espaço-tempo e supõe aí uma relação directa: essa interrelação. Os recursos didáticos são só mediações para a realização de tal ato que é interpessoal e, portanto, pressupõe a presença, de professor e aluno, em interação recíproca, dinâmica e real. O fato de haver recursos (digitais) não significa que tal ato deixe de existir ou que este deva ser substituído (ou mediado), em essência, por artefactos.

As aplicações dos conhecimentos – científico-social, técnico, histórico-filosófico e/ou artístico –, relacionados ao uso social da linguagem e do pensamento nas práticas sociais, requerem a mediação, decisiva, dos professores e das suas relações sociais nas instituições educacionais. Os professores podem e devem elaborar sínteses, seleção de informações e de contextualizações, desde as comunidades educativas, considerando a situação de todos os estudantes. O trabalho didático-pedagógico dos docentes, então, nunca é passível de ser desenvolvido de modo sistemático e aprofundado via EaD – cada vez mais articulado a descritores de competências que suprimem o conhecimento e toda a sua utilidade social. Questionar o senso comum – e as disposições ideopolíticas que o conformam – demanda teorias, métodos, programas, categorias e/ou experiências, que são daí vivificadas pela instituição escolar como um todo, e não podem ser replicadas por simulações, simulacros.

Pandemônio adquiriu expressão literária a partir do autor inglês John Milton que, ao final do livro primeiro de seu clássico poema épico (Paradise Lost, 1667), utilizou-o para evocar a alegoria de uma sorte de plenário maligno ou reunião conferencial dos diabos. Na proposição do argumento Milton refere uma profecia dos Anjos Decaídos sobre o que seria “uma nova criatura” a ser engendrada – desde as trevas – à sua imagem e semelhança. Pandæmonium é autoconstruído de um só golpe do abismo e conclama o início da sessão. Uma e outra vez, a vida imita a arte.

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